ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2020 ~
A Estação de Sintra e...
(2ª Parte)
A Estação de Sintra e... (2ª Parte)
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 20 de Março de 2020
Na 1.ª parte do artigo A Estação de Sintra e... falei de como o caminho de Lisboa a Sintra era feito no século XIX. Do ambiente desse, daquilo que se observava, de como as diligências (carruagens puxadas a cavalo) saíam da Rua do Ouro, na Baixa, em direção a Sintra, de como surgiu o termo BUS que utilizamos nos dias de hoje, e até como funcionava um comboio monocarril – num único carril, ao invés dos dois carris que vemos hoje em comboios, metro e eléctricos – que saía da zona próxima a onde hoje temos a estação de comboios de Entrecampos.
Também falei de como as coisas mudaram desde o século XIX até aos dias de hoje em termos de turismo, tendo abordado inclusivamente o termo tourist, surgido no início dos anos de 1800. E houve partes do turismo, cá em Sintra, que não mudaram, tendo por vezes apenas ficado escondidas para terem voltado a aparecer nos últimos anos: nesses anos de 1800 já existiam guias que, com os seus serviços, abordavam os tourists, sendo assim uma parte importante do que Sintra foi, do que Sintra continua a ser.
Vimos ainda que, aquilo que para nós hoje é apenas uma estação de comboios, com normais cidadãos no dia-a-dia, no passado recebeu as pessoas que a maior parte das gentes nos dias de hoje não imagina. E é também isso que aqui veremos hoje. Mas não apenas a presença ou passagem dessas, mas uma aventura que se deu, daí partindo.
A fonte de São Pedro, elaborada por Raul Lino, que apareceria entre a população quatro anos depois dos Animais Ferozes (a falar em breve, e que se encontra no Sintra Lendária) o terem feito, e que quinze anos depois era abençoada pela neve. Fevereiro de 1944. Arquivo Pessoal do Autor
E é isso que encontramos logo numa notícia do ano de 1893, publicada em Itália:
Ontem à noite o rei, regressando de uma representação teatral no palácio real em Sintra, surpreendeu um indivíduo que tentava cometer um homicídio. O rei e um seu oficial de ordenança prenderam o assassino com muita dificuldade. A pessoa ferida encontra-se em estado grave.
No entanto, se fizermos aquilo que na pesquisa em História importante é – não nos ficarmos por aquilo com que nos deparamos e nos fascina – começamos a perceber que as coisas não foram bem assim. Não no sentido de desmérito do Rei D. Carlos, nada disso; antes, em termos de como as coisas se deram.
Os noivos, D. Amélia, e D. Carlos, antes do casamento, gravados por Francisco Pastor. 1886. Arquivo Pessoal do Autor
No Reino Unido, enquanto Arthur Conan Doyle continuava a escrever os seus episódios de Sherlock Holmes – com as imagens do sucedido em Sintra, tão ao seu estilo -, o telegrama da Reuters rapidamente se espalhou por jornais de várias cidades, chegando até Glasgow, os seus títulos variando: A Courageous King, em Coventry; A Murder Prevented by the King of Portugal, em Liverpool; em Londres, somente The King of Portugal; e como não podia deixar de ser, também o título The King of Spain and the Assassin, em Devon.
Mesmo na Escócia, em Glasgow, surgia o suave Rescue by the King of Portugal, falando da volta que o Rei tinha ido dar, da dificuldade em dominar o assassino, e na visita que o Rei depois ao longo do dia seguinte tinha feito à hospitalizada vítima.
A estação de comboios de Sintra, por Cazellas e João Ribeiro Christino da Silva. 1887. Arquivo Pessoal do Autor
E até no novo mundo, nos Estados Unidos – e mais precisamente na Los Angeles de então (muito diferente dos dias de hoje, mas semelhante nos actuais pistoleiros) -, a notícia do assassínio tentado lá chegava, com o título: A King’s Heroic Act. Porém, não apenas a Los Angeles, pois no Connecticut encontrávamos o título Bully for King Carlos – He Fought and Overpowered a Big Ruffian, e também Saved by the King na Pensilvânia. Notícias essas vibrantes, como já era característico na personalidade norte americana de então, em que foram acrescentados pormenores que davam corpo de conto à notícia.
Pode no entanto perguntar-se porque disto falo se em nada disto que acabei de escrever é mencionada a estação de Sintra. É aqui, em casos como este, que não nos devemos ficar apenas pelo sentir do deslumbre que a História nos provoca, e que devemos ir mais fundo para ter mais detalhes – e assim mais compreender das pessoas que no passado viveram na terra que pisamos, com diferentes necessidades, sentires e viveres.
À direita, na actual porta fechada da estação de comboios de Sintra, o Rei D. Carlos e o Príncipe da Dinamarca. 1905. Arquivo Pessoal do Autor
Ao fazê-lo, encontramos de forma detalhada, aquilo que se passou – e ainda mais -, numa publicação portuguesa
El-Rei [D. Carlos], quando seguia anteontem à noite, de carruagem, da estação de Sintra para o Palácio da Pena, acompanhado pelo Senhor Capitão Malaquias de Lemos, foi surpreendido, próximo a São Pedro , por uns gritos de umas senhoras que estavam numa janela.
– Acudam, que estão matando um homem! – gritavam as aflitas senhoras.
Ao mesmo tempo de uma valeta fronteira partiam uns gemidos, e a voz de um homem que dizia:
– Ainda hoje te hei-de matar.
Nessa valeta lutavam dois indivíduos.
Sua Majestade e o Senhor Malaquias de Lemos saltaram da carruagem, correram para o local, conseguindo libertar das mãos do agressor o homem que este tinha prostrado.
O desordeiro atirou-se ao Senhor Capitão Malaquias, e derrubá-lo-ia se não é Sua Majestade subjugá-lo com uma forte bengalada, obrigando-o a largar o seu oficial.
Voltou o agressor à carga contra o Senhor Malaquias de Lemos, que se defendeu dando-lhe com os copos da espada. Finalmente foi preso e entregue à polícia que o enviou para Sintra.
El-Rei e o seu oficial viram depois o agredido, que estava em estado deplorável, e que certamente sucumbiria na luta se não é aquele auxílio providencial.
Um eléctrico da Praia das Maçãs (na época pintado de azul) passando pela estação de comboios de Sintra, com os táxis à direita. Primeiras décadas de 1900. Arquivo Pessoal do Autor
O malfeitor foi então levado para onde temos hoje, na Vila de Sintra, o posto de correios dos CTT. Era aí que se situava a antiga prisão de Sintra. Olhando através das grades, o culpado veria no passeio defronte – onde se situa a loja Artnis – ou o alpendre do antigo mercado de Sintra, ou a demolição do mesmo, que ocorreu nesse ano de 1893.
Para a História de São Pedro – Vila nas montanhas de Sintra, colada à Vila de Sintra, e na qual eu e o Gatinho residimos – fica uma história da História na qual o Rei D. Carlos e o Capitão Malaquias conseguiram travar um assassinato.
A estação de comboios de Sintra aguardando a chegada do rápido da tarde. 1906. Arquivo Pessoal do Autor
Mas esta história da História mostra também que quem passou na estação de Sintra não foram simples cidadãos, como também mostrei – em palavras e em imagem – na primeira parte deste artigo. E há que ter bem presente que na estação de Sintra não passam hoje apenas meros cidadãos: entre eles, há muitos de nós que lá passam e que pretendem fazer o melhor pelas nossas vidas, pela nossa cultura, pela nossa História, mesmo que todas essas vontades sejam concretizadas em silêncio, mesmo que todas essas vontades sejam concretizadas no auto-reconhecimento das nossas vidas, que a nós nos traz a maior felicidade e realização.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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