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Artigos do Jornal de Sintra por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - ano de 2019.jpg

ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2019 ~

William Beckford e Sintra
(2ª Parte)

William Beckford e Sintra (2ª Parte)
~ Beckford e o Convento dos Capuchos ~

por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 14 de Junho de 2019

    Na primeira parte mostrei algumas das pérolas que ao longo desta série de artigos sobre William Beckford e Sintra poderá encontrar. O mais comum seria agora escrever e desenvolver aquilo que de Beckford é mais conhecido, especialmente tudo o que concerne o caso da apresentação à Rainha D. Maria I. Mas mais importante do que nos regermos pelo mais comum é fazermos uso do bom senso; e esse diz-me que para que melhor possa conhecer o ser humano que está por detrás do nome que faz soltar “aaahhh” quando dele se fala – assim como de qualquer outro conhecido – é necessário contar coisas que saltam dos carris das categorias mais comuns.

   No Sketches (segundo volume da obra Italy; With Sketches of Spain and Portugal) encontramos uma carta em que o Convento dos Capuchos é visado. É uma carta muito polida em que o inglês de Beckford é tão suave quanto grandioso o suficiente para o sentirmos como um calmo furacão de veludo dentro do nosso peito. Aliás, como tudo aquilo que tratou de polir. E na verdade, Beckford escreveu os Sketches em francês tendo, depois de ter sido roubado e ver a obra publicada sem o seu nome, de os traduzir para inglês. Mas e no seu Journal (“diário”)? Que aí encontramos sobre o Convento dos Capuchos?
 

Um frade do Convento dos Capuchos da Serra de Sintra (recriação), por Francis Seymour Haden em 1877. Em depósito no Minneapolis Institute of Art (Minnesota, U.S.A.)

Frei Honório e os Homens Pequenos - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Jornal de Sintra

    O que encontramos é Beckford nas suas reais vivências, com menos filtros do que aquilo que pretendia para o público passar, fazendo até com que revelasse muito da sua intimidade. Para que sinta o impacto dos momentos de vivência no Convento dos Capuchos é necessário criar um contraste. Tal como hoje: se sair de uma manhã agitada em Lisboa e entrar no Convento dos Capuchos da Serra de Sintra, sentirá um impacto ainda mais forte. E como é que Beckford sentia Lisboa? Dar-lhe-ei apenas um exemplo de uma manhã: Nunca vi tão detestáveis subidas e descidas, tão escarpadas vertentes e íngremes ladeiras como aqui em Lisboa. Julguei, por vezes, que ia ser despejado no Tejo ou que ia rolar para dentro de valas de areia e cair no meio de sapatos velhos, de gatos mortos e das negras bruxas que se acolhem nestas cavernas e luras no propósito de lerem a sina e venderem feitiços contra maleitas. A Inquisição, às vezes, apanha estas miseráveis sibilas e trata-as horrorosamente. Não sei se a partir de agora pensará duas vezes antes de falar mal da sujidade de Lisboa, mas independentemente de o fazer ou não, o contraste com o Convento dos Capuchos da Serra de Sintra será sempre sentido.

   Numa manhã do Verão de 1787, Beckford foi até casa do Marquês de Marialva (actual residência de D. Duarte Pio, em São Pedro de Penaferrim), tendo pouco depois começado a passear pelas bravias encostas cobertas de urze, de onde se descobre uma vasta área da região toda crestada pelo sol e uma extensão imensa do oceano. O perfume dos arbustos aromáticos e das flores impregnava o fresco ar da manhã. O céu era do azul mais puro e suave. Seguimos um ventoso caminho de cabras, que conduz da cumeada da serra ao Convento da Cortiça, o qual, visto de longe, lembra o abrigo de Robinson Crusoé. Curiosa a comparação que Beckford faz, especialmente se tomarmos os canibais de Crusoé como os forasteiros que visitavam o Convento.
 

Frei Honório e os Homens Pequenos - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Jornal de Sintra

Perspectiva do claustro do Convento dos Capuchos. William Burnett, década de 1830

    Mas William B. continua, mostrando-nos o que estaria muito próximo do que é hoje conhecido como pórtico das fragas: Diante da porta, que é formada por dois fragmentos de um grande rochedo, fica um terreiro de relva macia tosado pelas vacas. O tilintar das suas campainhas encheu-me de ideias rurais. Lá dentro, não era apenas o tecto que era forrado com cortiça em muitas de suas partes: o pavimento também, o que é muito macio e agradável ao andar – algo que se utilizássemos apenas a nossa imaginação não alcançaríamos com o mesmo detalhe de quem escrevendo no seu diário o presenciou. Mas não eram apenas os interiores e o facto do Convento ter sido escavado na rocha que fascinava Beckford: O seu arvoredo e as sendas através das rochas são um encanto. Moitas de alfazema brotam das fendas dos rochedos à mistura com rosmaninho do verde mais delicado. Nesse dia, William Beckford e o jovem filho do Marquês de Marialva regressam por caminhos que não eram os mais apropriados para o fazer, tendo então uma fauna muito mais variada: D. Pedro e eu abalámos, à desfilada, para casa, metendo por um caminho fragoso e escarpado. Foi por Deus escaparmos incólumes. Tínhamos andado tão depressa que, ao verificarmos ser muito cedo, resolvemos subir até à Nossa Senhora da Pena [refere-se ao Mosteiro da Pena, onde termos hoje o actual Palácio da Pena], de onde é infinita a vista. Parecia um efeito de magia, as nuvens, de uma deslumbrante brancura, muito baixas sobre o mar. Dir-se-iam carruagens de divindades marinhas que acabassem de romper do seio do seu elemento e seguissem, em majestoso cortejo, a caminho da festa anual dos Etíopes, lá no mais longínquo cabo do mundo.
 

Homem e criança junto do Pórtico das Fragas. Final do século XIX / início do século XX

Mata das Avelãs - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Jornal de Sintra - 3..jpg

    Nesse mesmo Verão, passados alguns meses, Beckford voltou com o Marquês de Marialva ao Convento dos Capuchos da Serra de Sintra. A entrada desse dia no seu diário é algo confusa, notando-se que Beckford tinha ficado com algumas imagens e palavras por dizer assim que vivenciou certos momentos do dia, pois aparecem esses momentos repetidos com palavras com um grau de parecença que só difere através da traição da memória.

   Foi esse um dia semi-obscuro, tanto pelas nuvens e vapores sobre a planície, como pelo sol quase sempre oculto. O guardião do Convento dos Capuchos tinha convidado o Marquês de Marialva para lá irem jantar e visitarem o Convento. É contudo necessário ter em consideração que estes jantares do século XVIII tinham horas diferentes dos nossos. A hora normal de um jantar de então seria por volta das 15h00. Recordo-me de em determinada parte William Beckford ficar furioso por ter jantado num dia por volta das 17h00, coisa que lhe quebrou a rotina por ter sido tão tarde. Depois da missa, o filho do Marquês de Marialva e François Verdeil (o médico pessoal de Beckford) sentaram-se numa pedra coberta de musgo e começaram a desenhar qualquer coisa que eles imaginaram ser uma vista do convento, as rochas que o cercam e as suas matas. É impossível deixar passar sem realce o leve sarcasmo do terem desenhado “qualquer coisa que eles imaginaram ser uma vista do convento...” O céu deve então ter clareado e deixado apenas uma névoa, e embora o sol os dardejasse sem piedade [ao filho do Marquês de Marialva e a François Verdeil] e com os seus mais belos raios incendiasse as folhas dos loureiros e dos limoeiros, a vasta planície de terra e mar que se descobre do alto destas eminências estava coberta de nuvens. O efeito era extraordinário e eu sentei-me na abrupta encosta do monte para desfrutar o panorama.
 

Invenção e Exaltação da Cruz - Miguel Boim - O Caminheiro de Sintra - 2 II.jpg

Por Francis Seymour Haden aquando da sua visita a Portugal: Inside the Cork Convent Sintra, ano de 1877. Em depósito no Minneapolis Institute of Art (Minnesota, U.S.A.)

    Se eventualmente estes cenários criam em si um fascínio ao ponto de querer voltar a visitar o Convento dos Capuchos da Serra de Sintra, ainda há mais para o saborear dos seus sentidos: Ao pôr do Sol trepei por entre as rochas musgosas para uma pequena rotunda coberta de alfazema. Ali fiquei, embalado pelo murmúrio das ondas que investiam contra a costa a pique. As nuvens caminhavam, vagarosamente, por cima das serras. O marquês ia partindo pinhas e dava-me pinhões, que eram muito agradáveis. Sabiam a amêndoas. Nas palavras de William Beckford encontramos no Convento dos Capuchos os estímulos que vão percorrendo todos os nossos sentidos, desde a audição, ao palato e até... Por entre as fendas das rochas escarpadas para ali desmoronadas na mais bruta confusão vêem-se tufos de verdura que à mais leve pressão exalam aroma e frescor. Estas palavras certamente que foram nos séculos XVIII e XIX experiências que nem a mais avançada tecnologia do século XXI consegue proporcionar com a mesma suavidade e candura.

Um frade capucho de Sintra (a Capuchin and Peasant of Cintra). Marianne Baillie, 1821. Biblioteca Nacional de Portugal

Frei Honório e os Homens Pequenos - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Jornal de Sintra

    Não resisto em referir o guardião do Convento através dos olhos de Beckford nesse jantar: o guardião do Convento fez cara feia aos garfos e colheres diante de nós. Foi difícil convencê-lo a servir-se deles. Já em outro jantar William B. refere que o flamejante nariz e a sucosa testa deste respeitável eremita estão a pedir descrição. É homem para beber de um trago o melhor de três garrafas do Porto, num abrir e fechar de olhos, e depois emborcar uma igual quantidade de vinho clarete e Madeira. Na verdade, Assumar apertou com ele, não sem malícia, mas ele mostrou-se um pouco relutante.

   Cair nas palavras de William Beckford é, com os nossos sentidos intocados, sentir a nossa mente a receber os estímulos que apenas existiram no passado, tendo por outros sido sentidos. Mas Beckford tem mais para nos dizer.

 

 

* Nota: foi aqui utilizada a edição de 2009 da Biblioteca Nacional (Diário de William Beckford em Portugal e Espanha), a qual apresenta uma tradução realizada por João Gaspar Simões do original The Journal of William Beckford in Portugal & Spain, 1787-1788, este último publicado em Londres em 1954.

Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Artigos Publicados no Jornal de Sintra II.jpg

 

por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra

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