ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2018 ~
Tramas de Amor
do Século XIX
Tramas de Amor do Século XIX
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 26 de Janeiro de 2018
A caminho do mês da Lupercália, do mês do especial dia 14 e daquilo que antecede a transição para a estação que em suas cores o amor floresce, lentamente nos começamos a afastar do cinzento – que por vezes o desvario da paixão também provoca – para mais próximo ficarmos do amor entre dois seres.
São muito diferentes as formas de amor que encontramos não apenas na história, mas também em nossas vidas. Umas mais carnais do que outras, outras – que até nunca se chegam a concretizar – insufladas apenas pelo espírito de idílio e paraíso, onde através daquilo que por nós é sonhado, a si mesmo se basta para se sentir que se vive um sonho.
Claro que nesta última, quando somos nós o alvo dessa negra paixão, corremos o risco de nos sentirmos desafortunados tanto por aquilo que as outras pessoas vêem e que não existe, como pela pressão que em nós é incutida e que nos faz estar no limite do bem-querer do uso da educação. Pode não ser infortúnio único: podemos até ser vistos apenas como um objecto sexual, pois quando quem está em desvario percebe que não existe caminho a seguir para o consumar dessa paixão, nós, enquanto pessoa – e amizade –, somos por completo esquecidos.
Senhoras numa varanda do Palácio de Monserrate, numa recepção da família Cook no ano de 1904. Do livro Sintra Lendária
Bastam estes exemplos para que se perceba que nem todos os amores, nem todos os bem-quereres, são harmoniosos ou bem intencionados.
As paixões, podem por vezes ser negras. A associação única do termo paixão a algo ardente, vermelho de desejo como coração que bate no querer para si tomar alguém – algum corpo ou alguma mente (ou ambos) – é um conceito relativamente moderno. Paixão, na sua forma mais corrente da riqueza cultural da Europa – e principalmente naquela do século XVIII em que procurava lançar luz sobre o que na obscuridade se encontrava – foi vista como uma emoção que arrebatava o controle emocional e o controle mental de quem era por si atingido, na imaginação de um futuro bom ou mau. Existiam vários tipos de paixão definidos não por algo que tinha um intenso fluxo amoroso como hoje assim o é tomado, mas por emoções muito intensas e associadas a situações específicas de vida. Assim tínhamos o ódio, o medo, o apartamento, tal como podíamos ter o gosto e o desejo. Consoante quem tenha no passado sobre a paixão escrito, podemos realizar uma infinidade de inferências, como a que hoje associa a dor ao prazer, especialmente no mais ardente da paixão.
A história guarda para nós em suas memórias, outras dores, medos, ódios e surpresas, também todas essas emoções relacionadas com a paixão que mais se relaciona com desejo.
O ambiente entre damas, cavalheiros e oficiais, na actual Quinta de São Sebastião, na década de 1820. Por Domenico Schioppetta. Da Biblioteca Nacional de Portugal
Quando alguém vem de visita a Sintra, um dos quadros em que a sua imaginação mais o faz entrar à medida que os passos vão sendo dados na realidade física do que o rodeia, é o da época do Romantismo. Começam a lembrar-se dos livros do Eça (sem se ter consciência de que o pendor é o do Realismo com apenas estilhaços do Romantismo), das peças de roupa da época (os chapéus, as gravatas de então (que não se comparam com os “cordéis” – nem chegam a ser corda – de forca ao pescoço hoje usados), os vestidos, e tudo o mais), das carruagens, de mil e uma coisas que evocam esse espírito sem no entanto lembrar os odores e paisagens sociais de então, muito difíceis da imaginação atingir se para isso não possuir os devidos instrumentos.
No meio desses quadros, é fácil visualizarem-se as mil e uma histórias em nossa mente, é fácil recordarem-se enredos lidos em obras de ficção da época, os quais se tornaram clássicos da literatura. Mas o mais difícil é chegar-se às histórias da história que ainda se encontram escondidas.
A Quinta de José Dias – ou a Quinta Mazziotti – com os seus pares amorosos na década de 1820. Por Domenico Schioppetta. Da Biblioteca Nacional de Portugal
Devido ao aprisionamento do Rei D. Afonso VI na década de 1670 no Palácio da Vila – e com a morte do mesmo, nessa mesma condição, no seu quarto no ano de 1683 –, o Paço Real de Sintra tornou-se um estigma para a Família Real. Somente na década de 1840 quando o Palácio da Pena começou a ser construído no cume onde se situava o velho Mosteiro da Pena é que a Família Real o voltou a utilizar com alguma assiduidade, enquanto as condições mínimas na Pena não eram alcançadas. É desses anos o que tenho hoje para lhe contar, e que evoca diferentes contornos de amor – enquanto tempos diferentes e enquanto modi operandi diferentes.
Por esses anos o embaixador russo em Portugal tinha uma rapariga jovem como sua “protegida”. Era comum, na fase mais socialmente intensa do século XIX, homens solteiros ou viúvos que tinham bastante influência política, social ou económica, terem uma rapariga muito mais jovem a quem ofertavam presentes de elevada qualidade, como jóias e vestidos, chegando ao ponto de lhes proporcionarem uma mesada. Devo acrescentar que essas condições não evitavam que as senhoras chegassem ao fim do mês sem posses, ou que tivessem de penhorar o que lhes era oferecido. Nestas condições estava a favorita do embaixador russo.
Mas um dia – como em tantas outras vezes – encontraram-se, e ele inquiriu que anel era aquele que ela naquele dia usava. Ela disse que tinha sido ele a oferecer. Ele contrapôs dizendo que nunca lhe tinha oferecido um anel com uma gema daquelas. Após muito se esquivar e o cerco dele muito apertar, ela confessou que aquele anel tinha sido um presente do embaixador – muito provavelmente, pela circunstância em que o caso é relatado – espanhol. O russo ficou furioso e mandou que nesse dia ela enviasse um bilhete, um convite, para o embaixador espanhol a visitar numa casa cá em Sintra – a qual, na verdade, era a do embaixador russo. O espanhol ficou todo contente, e chegada a noite apresentou-se.
A Rainha D. Amélia montada a cavalo em Seteais, no ano de 1904. Da Rainha e do Rei D. Carlos muito – em termos de contrastes amorosos – também se pode encontrar. Do livro Sintra Lendária
Chegado à sala onde a jovem se encontrava, sentou-se, e deixou escorrer melífluas palavras de amor em direcção a ela. Foi quando de repente, das sombras que as velas provocavam na sala, saltou o embaixador russo com uma pistola em cada mão. Uma de suas mãos não premiu o gatilho; antes, aberta, lançou aquela pistola ao embaixador espanhol. Estava lançado o desafio para o duelo que pretendia limpar a honra do embaixador russo.
Os duelos já desde longa data – Rei Afonso IV – eram proibidos em Portugal, sendo renovadas as suas proibições nas ordenações (conjuntos de leis) de diversos reinados. Como em tantas outras coisas – assim como nos dias de hoje – apesar da proibição legal eram socialmente aceites e praticados. No entanto, o repto estava lançado. O pior foi que o embaixador espanhol recusou o duelo; gerou-se um pandemónio; o Rei D. Fernando II ainda não tinha partido de Sintra para Lisboa e viu-se na obrigação moral de ir até lá tentar resolver a situação. Entrado na tal casa, tudo se aquietou. Não se sabe exactamente o que se passou, mas sabe-se que no dia seguinte a jovem apanhou um paquete para Inglaterra, segundo o relatado poucos meses depois, para nunca mais voltar.
Este foi um recontar diferente para a aproximação da evocação do amor de Fevereiro. Outras histórias poderiam ser contadas – como as tenho contado nestas evocações anuais – mas não quis deixar esta de parte, embora tenha elementos que não se aproximam da imagem da época do Romantismo que as pessoas imaginam – por isso e pela realidade disso, as surpreendendo – nem se aproximam do amor idílico que alguns poucos loucos louvam e sonham. Mas a verdade é que nós não temos culpa daquilo que sentimos. Nem tampouco conseguimos controlar o selvagem e genuíno ímpeto da paixão. Da ardente e vermelha paixão que em momentos da nossa vida nos consome, da fogosa paixão que por vezes coloca o nosso bem viver em risco.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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