ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2019 ~
Santa Maria da Pena
e um Eclipse
Santa Maria da Pena e um Eclipse
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 12 de Julho de 2019
Quando olhamos para as mais antigas estruturas que guardam a História sentimos a brisa do deslumbre que, com os pequenos pedaços de conhecimento que vamos tendo, nos corre o rosto. Tentamos compor uma imagem do passado, conseguimo-lo, mas não tendo consciência da realidade de todas as nossas próprias limitações.
O Palácio da Vila – o das grandes e brancas chaminés cónicas – era no passado o grandioso Paço Real de Sintra, possuindo então uma imponência que hoje já não é perceptível, e que se elevava para quem de longe para a paisagem Norte da Serra olhasse.
Aí nasceu um dos filhos do grande Rei D. Duarte, o qual recebeu o nome de Afonso. O pai quis que aquele seu filho fosse o primeiro Príncipe de Portugal, tendo sido assim criado o título na década de 1430. E, além de lá ter nascido, D. Afonso foi investido com o título de Príncipe Portugal também no Paço Real de Sintra. Os anos passariam, e o Príncipe Afonso seria coroado enquanto D. Afonso, Rei de Portugal, o V de nome (Afonso), evocando assim também o nome do Rei Fundador.
O primeiro Príncipe de Portugal (nascido e fenecido em Sintra), representado já como cavaleiro e Rei D. Afonso V. Iluminura dos anos de 1400, presente no manuscrito Armorial de l’Europe et de la Toison d’Or, da Bibliothèque Nationale de France
No início da década de 1450, D. Leonor, irmã do Rei que havia sido o primeiro Príncipe de Portugal, casaria com o Imperador Frederico III. Um dos homens que a acompanhou até Itália, até ao encontro com o Imperador, foi D. Luís, Bispo de Coimbra. Poucos meses depois do regresso do Bispo de Coimbra – aí já tornado Arcebispo de Lisboa -, veríamos esse subir estas colinas de São Pedro, deixando para trás a leprosaria que aqui existia, e estando prestes a alcançar os Banhos de Santa Eufémia para tentar tratar-se desse mal de lepra que também a ele o atormentava. Da localização dos Banhos ver-se-ia à frente um vale que à medida que ia subindo, à medida que se ia apertando, à medida que se ia encerrando, ia também elevando nos ares à sua frente, no fechar dos dois lados do vale, um grande monte de grandes rochedos. Entre esses rochedos estava uma frágil ermida: a Ermida de Santa Maria da Pena. Por esses anos, por essa década de 1450, o Rei D. Afonso V teve um filho, recebendo esse o nome João.
No ano em que completa dezasseis anos o Príncipe João é armado cavaleiro e casa com D. Leonor, cerca de três anos mais nova do que ele. Com o passar dos anos o Príncipe vai ficando cada vez mais desagradado com a forma como o pai, o Rei, vai governando o Reino de Portugal: pela forma como os mais poderosos vão tendo cada vez mais poder, pela forma como os mais fracos vão ficando cada vez mais fracos.
O Mosteiro da Pena (no lugar do actual Palácio da Pena) e uma parte do Paço Real de Sintra (em baixo, à esquerda) no século XVI. Fragmento de desenho de Duarte d’Armas no início dos anos de 1500. Torre do Tombo
Em Agosto de 1481 o Rei D. Afonso V morre. E morre no mesmo sítio onde tinha nascido: no Paço Real de Sintra. E tal se sucede na mesmíssima sala em que tinha nascido: na Sala das Colunas. Cerca de três dias depois, o Príncipe João veste uma longa capa dourada que se vai arrastando sobre os degraus que o Príncipe deixa para trás no seu subir até um cadafalso; sobe depois mais outro lanço de degraus que o levam até uma cadeira na qual se senta. Aí segura numa de suas mãos um ceptro. Momentos depois a mão deixa o ceptro para se juntar à sua outra e se apoiarem ambas sobre um missal; assim é prestado o seu juramento; com os nobres diante de si, prestam-lhe estes também um outro juramento; terminados os juramentos há uma bandeira do Reino de Portugal que se solta, assim como uma voz lança no ar: Real, Real, Real, pelo muito alto e muito poderoso El Rei D. João Nosso Senhor! O Príncipe transformado em Rei desce do estrado e monta um cavalo, gritando o dito Real, Real; o agora Rei D. João II começa a afastar-se a cavalo do cadafalso onde foi coroado, percorrendo um terreiro cercado por edificações: o terreiro do antigo Paço Real de Sintra.
Os anos foram passando e foram dando uma imagem de rei justiceiro, aplicando por vezes a justiça com uma mão férrea que tirava vidas sem a essas olhar. Depois de muitos dissabores que o Rei e a Rainha D. Leonor tiveram, veio um que lhes foi mais forte: o falecimento de seu filho, com apenas dezasseis anos e no mês em que tinha casado. Mesmo com todas as sinuosidades da vida o Rei e a Rainha mantiveram-se sempre juntos.
Ao longe e através da vista da antiga capela de São Pedro de Canaferrim (no Castelo dos Mouros), o Mosteiro da Pena. William Burnett, década de 1830
Dois anos depois do falecimento do filho de ambos, o Rei adoeceu com alguma severidade. Durante o tempo em que esteve doente prometeu fazer uma peregrinação, tanto que Deus o pusesse bom. Deus decidiu que assim aconteceria. E passados tempos, num raiar de manhã, saiu o Rei de Torres Vedras com alguns nobres a pé, passando por mosteiros e conventos, passando por pequenas propriedades, dando esmolas, e seguindo o rumo daquela peregrinação que os levava a Sintra.
Quando chegou a Sintra, o Rei D. João II e a Rainha D. Leonor começaram a subir o longo vale que tinha a seu meio um pequeno convento muito sombrio (o primeiro Convento da Trindade) e que num dos lados desse vale subia um trilho para os Banhos de Santa Eufémia: o mesmo vale que se apertando elevava um monte de grandes rochedos no ar. O vale ia-se apertando, fechando e elevando cada vez mais nos ares – perante os olhos de quem o subia – aquele monte de grandes rochedos que tinha no seu topo a frágil Ermida de Santa Maria da Pena.
O Paço Real de Sintra pouquíssimos anos depois de D. João II ter falecido, vendo-se na montanha o Castelo de Sintra. Fragmento de desenho do Palácio da Vila no início dos anos de 1500, por Duarte d’Armas. Torre do Tombo
Lá chegados, foram montadas tendas pelos homens que formavam o séquito do Rei e da Rainha. Começaria aí, nesse dia, o cumprir de uma novena, de um conjunto de orações que iria durar os dez dias seguintes àquele. Estávamos então em Outubro, num muito fresco Outubro para o cume do monte no qual se situa hoje o Palácio da Pena. Não se sabe com total a certeza as datas entre as quais lá estiveram, apesar do Conde de Sabugosa referir que lá estiveram entre 30 de Setembro e 10 de Outubro. Com total certeza sabe-se que a 3 de Outubro o Rei lá se encontrava pois continuou a tratar das questões de estado, existindo documentação assinada pelo Rei em Santa Maria da Pena nessa data.
Se lá tiverem chegado a 30 de Setembro representa igualmente uma curiosidade: 30 de Setembro é o dia de São Jerónimo, e quem ali se veio a instalar pouquíssimos anos depois foi precisamente a Ordem dos Jerónimos, depois de construído o Mosteiro da Pena naquele mesmo monte. Pessoalmente, seria para mim – caso a data se confirmasse – uma coincidência mais interessante do que até o veado branco da Pena.
Representação do Rei D. João II numa iluminura da década de 1490. Em letras destacadas no cabeçalho lê-se O Nome Deus Seja Sempre Louvado. Torre do Tombo
Nessas noites a lua estava a decair de cheia para quarto minguante. A lua cheia tinha ocorrido no dia 25 de Setembro. Nas noites – que começaram pouco passando das dezoito horas – de céu limpo ver-se-ia ali na Pena um brilho de luar bastante intenso. O pai do Rei tinha na sua regência permitido que se caçassem lobos novamente na Serra de Sintra, indicativo do crescimento do seu número. Terão ali, na Pena, na antiga Ermida e durante aquelas noites de luar mais intenso, o Rei e a Rainha ouvido uivares de lobos nos vales e montes da Serra?
Existe ainda uma outra curiosidade relacionada com a possibilidade das datas: caso tenham realmente saído da Pena a 10 de Outubro, por volta do meio-dia ocorreu um... eclipse solar. Sim, é mesmo verdade. Caso os céus tenham estado limpos e caso essa data se confirme, O Rei D. João II depois de ter passado aqueles onze dias junto da frágil Ermida de Santa Maria da Pena, no topo daquele monte de grandes rochedos, no dia que de lá saiu – ou antes ou depois de sair – observou nos céus um eclipse solar (o qual não foi total, apenas parcial) que durou entre o meio-dia e as quinze horas, tendo sido o seu auge quando ainda não eram catorze horas, e tendo ficado o Sol com a sua luminosidade obscurecida por metade.
A História escrita, as possibilidades de reconstituir os ambientes, a doce amabilidade de Sintra, continuam a enfraquecer as ficções perante o encanto de realidades de outros tempos. Santa Maria da Pena aviva-se.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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