ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2020 ~
O Halloween e o Dia dos Mortos
O Halloween e o Dia dos Mortos
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 20 de Novembro de 2020
Os sinos da Igreja de São Martinho, da Igreja de Santa Maria, de São Pedro e das outras igrejas que se espalham por Sintra e por Portugal, anunciaram muitas vezes no seu férreo bater a partida iminente de um ser humano deste mundo.
Nesses momentos em que a voz dos sinos se fazia ouvir pelos ares comunicando a partida que se aproximava, aqueles que faziam parte de irmandades e que conseguiam deixar momentaneamente os seus ofícios dirigiam-se para o ponto de encontro, aí vestindo as suas capas vermelhas. O sacerdote que próximo deles se encontrava, ornado com linhas de ouro e folhos, preparava a hóstia que seria carregada de forma encoberta por seda branca com uma cruz a dourado cosida.
Este grupo de pessoas que preparava a passagem fazia-se anunciar em alguns momentos da sua caminhada por um pequeno sino. A liderar o caminho e aparecendo no ar, uma cruz de prata era ao alto erguida e ladeada por homens que traziam pequenas chamas nas lanternas tremeluzentes. Mais atrás, um dos homens vinha vestido todo de preto, coberto nos ombros por uma samarra branca, balanceando numa das mãos um fumegante incensório que no seu movimento, com o ar passando no seu interior, tinha o seu carvão com um vivo vermelho alaranjado como um coração cheio de vida. Por último, via-se o sacerdote, tendo por cima de si um pálio, uma espécie de sombrinha com desenhos em relevo sobre um fundo baço, um fundo mate.
Os mortos expostos num 2 de Novembro do século XIX, em que mais do que estarem visitados, estavam a ser observados
Atrás deste grupo de homens vinham várias pessoas com um harmonioso murmurar, as quais sabiam que a origem daquele movimento era a partida de um seu conhecido, de um seu próximo, que se estava prestes a dar. As carruagens que se deparassem com aquele grupo paravam; as pessoas que vinham a cavalo faziam o mesmo, mas desse desmontando e ajoelhando-se perante a passagem daquele movimento. Quando o grupo era avistado – assim como nos instantes após a sua passagem – as ruas e os caminhos ficavam acomodadas a um longo e tranquilo silêncio.
Esta era uma das muitas coisas que sabíamos poder encontrar na nossa vida no seu fim, caso tivéssemos vivido no que Portugal sempre foi. Nos últimos momentos em que alguém nos visse já sem vida – e se tivéssemos reservado algum dinheiro para isso – ficaríamos expostos numa sala com panos negros nos quais pontilhavam caveiras e lágrimas, de olhos fechados e vestindo um hábito de uma ordem religiosa, com uma pequena cruz nas mãos unidas em posição de oração. Todos aqueles conhecidos que de nós se aproximassem, iriam salpicar-nos em forma de cruz com a água sagrada que para esse efeito tinha sido colocada ao nosso lado.
Após algum tempo, a rua na noite começava a ter um brilho ao fundo, brilho esse que era acompanhado por um triste cântico saído do coração dos monges que com as suas velas se aproximavam para nos acompanhar na nossa última jornada neste mundo. A sua companhia far-se-ia sentir de forma mais intensa já dentro da igreja, com a melodia De Profundis a percorrer o ar, rompendo o fumo do incenso que subia no interior secular daquele espaço onde debaixo das lajes, debaixo do chão, ficaríamos sepultados.
Uma gravura do século XIX que representa o movimento referido - antes da passagem de alguém -, sendo que esta representação é precisamente de algo vivido aqui em Sintra e apresenta algumas diferenças para com o que então era habitual
Assim aconteceu durante séculos nas igrejas de São Martinho, de São Pedro, de Santa Maria, de São Miguel, tal como em qualquer outra. Aqui, em Sintra, isto toca-nos de forma especial, por Sintra ser o que para nós é, mesmo que não tenhamos vivido a intensidade com que os mortos eram então tratados.
Claro que aqueles que para aquilo que lhe contei não tivessem posses, tinham um fim diferente. Mas ainda assim custoso também – em todos os sentidos –, como podemos ficar a saber através das palavras do século XVI de um alcaide de Torres Novas, que dizia que pela dificuldade de aqui se abrir a terra, e aqui existirem pedras por tudo quanto era lado, era aqui mais caro morrer do que aqui viver.
Uma gravura do século XIX feita por Metello – intimamente ligado a Sintra -, representando uma sepultura e a adoração que tinha pela misteriosa Elisa
Apesar do mesmo alcaide dizer que Sintra não tinha céu nem terra devido ao céu estar sempre oculto pelo nevoeiro e a terra estar recheada de penedos, todo aquele que hoje aqui vem e por Sintra se apaixona entra numa longa viagem até ao passado, até ao seu coração, até ao coração do Homem. Fica aqui mais intrigado pelos mistérios da vida, fazendo com que aos mortos preste mais atenção. Isto não se passa apenas connosco nos dias de hoje; muito da História de Sintra lendo, podemos sempre encontrá-lo, ou não fosse a Serra de Sintra um sítio tão encantadoramente místico como o é, como o sempre foi.
Esta fase em que agora entramos é das mais especiais do ano. Para que consiga perceber: o termo tão comercializado, banalizado e mal utilizado, “Halloween”, era já na década de 1590 anotado por Shakespeare na sua peça Two Gentlemen of Verona, quando refere: …like a beggar at Hallowmas… O termo “Halloween” vem de All Hallow’s Even [Even, para nós hoje no sentido de Eve], o que em Português se traduz como A Véspera de Todos os Santos. Essa expressão inglesa, com a transformação fonética e ortográfica foi-se contraindo até formar o termo Halloween. E o que Shakespeare referiu [traduzido: …como um pedinte na missa dos Santos…] faz-nos inevitavelmente lembrar também o “Pão por Deus”.
Também do século XIX, os ciprestes à esquerda mostrando o cemitério de São Sebastião (que ocupava também o espaço onde hoje temos a G.N.R. em frente à Estação de Comboios de Sintra)
Depois da Véspera de Todos-os-Santos e do Dia de Todos-os-Santos, temos então o 2 de Novembro, o Dia dos Mortos. Este é o dia em que os finados são recordados através das vivas memórias que deles temos. Infelizmente, a distância que se vai criando no tempo faz com que muitos daqueles que já desapareceram da nossa vida passem a estar cada vez menos presentes nas nossas lembranças. É portanto o dia de – na incapacidade de deles nos lembrarmos em outras épocas – serem justamente recordados. Muitas pessoas aproveitam também para os visitar. Hoje em dia nos cemitérios; mas no passado, como referi, também nos chãos das igrejas e capelas.
Nesse passado existiam também espaços religiosos que tornavam mais vivas as visitas. Quanto mais distante se encontre de um contexto religioso ou teológico, mais estranho isto agora lhe soará, senão mesmo como algo macabro: existiam espaços religiosos que no passado expunham os seus defuntos. Alguns expunham os seus defuntos de pé, contra a parede, para que pudessem ser – até mais do que visitados – observados, como se pode ver numa destas imagens.
Existe uma descrição do século XIX acerca de uma visita a um convento de Lisboa, em que os mortos ficaram expostos contra a parede, descrição na qual se relata que um deles – um dos mortos – devia ser uma pessoa realmente muito alta quando em vida, pois já tendo ali perdido os pés (por vezes os ossos iam caindo e já não se sabia bem que ossos pertenciam a quem), encostado contra a parede era mais alto do que todos os outros que estavam completos. Como pode ver, no passado existiu aquilo que hoje imaginamos não ter sido possível. Como o nosso Frei Vasco, de Penha Longa, que tendo ido para Espanha no século XV sentiu muito a morte de Frei Auberto, seu antigo companheiro religioso, na Serra de Sintra. Mas nesse caso não o visitou; recebeu tempos depois a sua cabeça, tendo derramado lágrimas de felicidade sobre a mesma. É aquilo que a História, através de uma crónica religiosa do século XVII, nos relata.
É, para nós hoje algo bizarro ou macabro, mas tratam-se dos nossos antepassados e dos hábitos que tinham. E certamente que daqui a duzentos ou daqui a seiscentos anos, quando olharem para a nossa época encontrarão coisas muito mais bizarras que para nós hoje são normais. Haja quem então de nós se lembre, nestes tempos que vivemos, sem podermos estar com os nossos, vivos ou mortos.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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