ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2017 ~
A Mata das Avelãs
A Mata das Avelãs
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 27 de Outubro de 2017
A Mata das Avelãs é um lugar, um espaço, uma mancha na Serra de Sintra. Tinha tudo para apenas ser uma mata de avelaneiras, mas o nome outorga-lhe o peso que o espaço tem.
Sentimo-lo por o vermos anotado nos séculos que para trás de nós se estendem. Vemo-lo a avivar as vidas que há mais de quatrocentos anos na Serra viveram, e que nas palavras gravadas nos foram deixadas por aqueles que na história as quiseram marcar. Quem o fez certamente não sabia quão importantes essas palavras seriam num futuro distante.
Fragmento de iluminura de livro de horas conhecido como Grandes Heures d'Anne de Bretagne, representando uma aveleira no início do século XVI. Pertença da Bibliothèque Nationale de France
A Mata das Avelãs é um espaço perdido no meio da floresta. Foi na Mata das Avelãs que um velho homem, por todos amado enquanto frade capucho, teve mais um encontro com o Diabo, o qual insistia em persegui-lo – como todos aqueles que sendo puros, são nas suas sombras por outros rostos e negros corações perseguidos. A partir desse dia – diz-nos a crónica – quando se dava o flagelo que devora florestas, ali chegando, ali onde Honório um dia, em mais uma vez, derrotara o Diabo, o flagelo extinguia-se como se o lugar tivesse, através daquele seu amado filho, ganho a bênção de Deus. A marca da vitória do bem sobre o mal passara para o nosso plano. Não apenas para o nosso plano, mas para o plano das vidas que pela Serra passaram: Honório para dessa vez derrotar o Diabo, tinha feito o sinal da cruz perto da Mata das Avelãs, cruz essa que por divina força ficou em pedra gravada. E a partir desse dia, os camponeses que por ali passavam relatavam a seus filhos a história, dizendo-lhes que beijassem a cruz de Honório.
No fim do caminho para o Convento dos Capuchos, já não muito distante da Mata das Avelãs. Desenho de Clarkson Stanfield a partir de esboço do Capitão Elliot (ano de 1833). Pertença da Biblioteca Nacional de Portugal
A Mata das Avelãs, pela singeleza e simplicidade de seu nome, não cria mil cores para o avivar, como tanto se faz a tantos espaços por não terem a riqueza histórica deste pedaço da Serra de Sintra. A Mata guarda o poder que nenhum outro nome nos dias de hoje inventado consegue para si recriar: o poder da história, o poder da história se deixar amar por quem a estude, por quem dela tome conhecimento e mais queira saber.
Próxima da Mata das Avelãs passava a água que corria colinas abaixo até ao tanque de uma antiquíssima edificação religiosa; próxima da Mata das Avelãs passava a água que o Rei D. João V bebeu e louvou, ordenando que se fizessem curiosas diligências para que a água passasse a ser reconhecida no Reino como das de melhor qualidade.
Homem e criança junto do Pórtico das Fragas (Convento dos Capuchos), estando assim nas proximidades da Mata das Avelãs. Final do século XIX / início do século XX
Pela Mata das Avelãs – quando o flagelo da ausência de chuva grassava num Agosto do século XVIII – passaram seus religiosos vizinhos descalços, entoando orações, contendo tudo isso todos os contornos de um ritual condenável à época pelo controle dos bons comportamentos religiosos. A Mata das Avelãs viu-os assim passar, no desespero do homem que queria fazer chover para que outros lá longe parassem também de sofrer.
A Mata das Avelãs tinha, em seus tempos passados, avelãs. Que tem hoje a Mata das Avelãs? Prefiro pensar que ainda tem os passos que Arsénio, Cristóvão, Mateus, Gaspar, Honório, Estevão, Agostinho, lá deram, marcando o chão da terra que amavam e que na humildade em que viviam sustento lhes dava.
Senhora de idade e homem, sentados no átrio de entrada Convento dos Capuchos. Final do século XIX / início do século XX
A Mata das Avelãs não possui encantos que façam os olhos brilhar como brilham aqueles de quem vê os corpos da Pena ou de Monserrate. Mas faz brilhar o coração de quem a ama em sua simplicidade, por tão simplesmente manter a integridade que seu nome teve ao longo de séculos. A Mata das Avelãs – ainda para quem já não as coma – alimenta a esperança. E a esperança é dos bens maiores que ter podemos. É um bem e uma força que faz mover, como se uma estrela fosse, como se dentro de nós, a partir do momento que passamos a ter esperança, passássemos a ter a capacidade de combustão de um astro rei. E nada disso tem que ver com o que vê, com o que é visível. Tem que ver com o que se sente e com aquilo que para os outros se pretende deixar.
A vista do Oceano, tendo por perto a Mata das Avelãs. Da série Drawn From Nature de William Colebrook Stockdale (c. 1875). Pertença da Biblioteca Nacional de Portugal
Até porque... Já não conseguimos ver a Mata das Avelãs. Ela já não existe como os nossos antepassados a viram.
Não sabemos que plantas eram ali em redor da Mata apanhadas para serem processadas nos braseiros do herbolário do Convento dos Capuchos. Não sabemos que plantas eram ali apanhadas para que seu verde sangue ficasse guardado ao lado da enfermaria do Convento, para com um conhecimento humano curar uma humana dor.
No início do antigo caminho para o Convento dos Capuchos, por entre as colinas que também levavam à Mata das Avelãs. Da série Drawn From Nature de William Colebrook Stockdale (c. 1875). Pertença da Biblioteca Nacional de Portugal
...corre em torno a célebre mata chamada das Avelãs; tão densamente copada, que se não distingue porção de terreno, o qual não se veja ornado de aprazível formosura...
...antes de entrar em uma espessa e sombria mata, a que chamam das Avelãs...
...e basta dizer da sua grandeza, que o seu fruto está patente para toda a pessoa, que quer colhê-lo, pois se não proíbe a pessoa alguma...
O suave vale do Convento dos Capuchos, tendo nas proximidades a Mata das Avelãs. Da série Drawn From Nature de William Colebrook Stockdale (c. 1875). Pertença da Biblioteca Nacional de Portugal
São algumas das folhas que vários séculos têm e nos sobraram da antiquíssima Mata das Avelãs. Mas pelo menos ainda as temos. Os segredos que a Mata das Avelãs encerra, se os soubermos, saberemos com a Graça de Deus quando deste mundo transitarmos para o outro. Mas enquanto aqui, enquanto neste, devemos proteger não só os desconhecidos recantos que por este país existem, mas também os seres humanos que entre eles habitam. A história – as suas folhas, como estas destas avelaneiras – é escrita e lida por esses. Mas só existirá e será protegida se os nossos próximos – em situação que for – ajudarmos. A morte e as tragédias tocam-nos a todos. Mesmo que até agora se sinta incólume e que isso lhe crie uma – falsa – sensação de segurança. Mas a esperança está ao meu e ao seu alcance. Por muito que até agora se tenha perdido, ainda vamos a tempo de ajudar.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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