ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2020 ~
Livros Lendários
(1ª Parte)
Livros Lendários (1ª Parte)
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 12 de Junho de 2020
É nas páginas escritas por outros que conseguimos encontrar, muitas vezes, recantos que são casas únicas para a nossa alma descansar ou tirar prazer. Dentro dos muitos estilos, há sempre um grupo restrito de géneros onde acabamos por, com maior facilidade, encontrar essa tal casa que refresca a nossa alma.
Estando dentro dessa casa, conseguimos colocá-la em outros mundos, em outros tempos, como se fôssemos nós, por fora, deuses que a conseguem transportar no tempo e no espaço, até outras estações, até outras culturas.
Mas o tempo que nos sobra para sermos deuses que nos proporcionam o que mais nos deslumbra é muito pouco, e faz-nos sentir como ignorantes por não podermos conhecer tudo o que há para conhecer, todos os mundos que há para viver, todas as personagens que há para sentir. E isto, mesmo para quem é em seu trabalho obrigado a estar permanentemente a ler livros de outros tempos.
O Palácio da Vila no início dos anos de 1500, por Duarte d’Armas
Depois de muito do passado ler – de forma consistente e permanente – posso dizer que o passado guarda as mais belas histórias de fantasia – e por fantasia não falo em seres mágicos; falo isso sim, de toda a magia que se vê envolvida na vida humana, no correr dos anos, nas nossas expectativas, nas nossas crenças, e nas nossas interpretações do que a vida é. E, à medida que o passado se vai tornando mais vivo por termos mais contacto com ele, por estarmos sempre a conhecer novas coisas – simples, quase nem directamente mencionadas -, vamos, cada vez mais, fazendo mais parte desse passado, vivendo cada vez mais nesse mundo. Isso abre-nos os olhos para as realidades de outros tempos, e torna todos os adereços considerados mais fabulosos e excêntricos das grandes séries e filmes de hoje, numa brincadeira em que tudo é novo, não tem desgaste, modos, maneiras de outros tempos, e parece ter sido tudo feito numa fábrica por serem cópias tão exactas umas das outras. No passado existiu, como é óbvio, produção em série, mas cada cópia não era exacta.
Nos primeiros livros do nosso Reino – daqueles que estão disponíveis para nós hoje e que se relacionam directa ou indirectamente com Sintra – encontramos passaportes para passados distantes. O que aqui faz a diferença – distinguindo-os da ficção escrita nos dias de hoje – é que são tempos passados que existiram, que realmente existiram, e que se relacionam connosco por terem ocorrido debaixo destes céus tão únicos que as pessoas de outras culturas desejam, e por terem ocorrido nesta mesma terra que hoje pisamos, embora que com diferentes subidas e descidas pelas terras serem mexidas ao longo dos séculos, pelos caminhos e locais de passagem se irem modificando ao longo das centúrias.
O tecto da Sala das Pegas, Palácio Nacional de Sintra (Palácio da Vila)
Um desses livros que faz parte daquilo a que me referi como dos primeiros livros do nosso Reino, é um livro que tem como título Livro da Montaria ou Livro de Montaria. “Montaria” designa a caça ou correr a caça, isto é: caça com animais em terra, diferindo por exemplo da Falcoaria (caça com uso de falcão) ou da Cetraria (caça com uso de falcão e/ou outras aves de rapina).
À primeira vista poderá achar uma vulgaridade, uma banalidade, e nem deverá perceber porque falo de um livro que é visto como um manual de caça. Mas tendo a paciência de o ir lendo e procurando saber o que certos termos do português de então queriam dizer (cá, por exemplo, também queria dizer “porque”) começamos a ver que o Livro da Montaria é um manual de caça, mas tem muito mais sobre a vida, a moral e, principalmente, sobre a natureza. Ou mais concretamente, sobre a lealdade para com a natureza. É certo que o livro incide sobre a caça ao cervo, ao urso, incidindo especialmente sobre o javali, mas fá-lo muito sob a perspectiva do desenvolvimento de um cavaleiro. Menciona que com a prática da Montaria um cavaleiro ficaria muito melhor preparado para as batalhas, ao invés dessa preparação se ficar somente pelas justas na Rua Nova, pois nestas justas o cavaleiro tinha apoios na parte de baixo do ventre que o atavam ao cavalo e os joelhos presos por faixas em redor desses. Para quem já tenha lido romances históricos com cavaleiros, estes são pormenores reais, partes do nosso passado. E até mesmo a Rua Nova era uma das mais amplas ruas de Lisboa e situava-se imediatamente a norte de onde hoje temos a Praça do Comércio, tendo ligações com essa através de ruas mais estreitas.
Casamento de D. João I com D. Filipa de Lancaster, em iluminura presente no manuscrito Chronique d'Angleterre, do século XV
A minúcia com que são descritos certos conhecimentos é soberba. Particularmente os conhecimentos de quem conseguia sentir na pele a vivências nas florestas e nos bosques. Não eram conhecimentos curtos, restringidos apenas a um mero facto como hoje tanto se vê e lê quando se olha para o passado; os conhecimentos abrangiam o passar dos quartos de hora, da neve, do sol, da altura do dia, da altura da noite...
É explicado, por exemplo, que o orvalho cai durante a noite; se as ervas estiverem orvalhadas de dia, é somente devido à névoa, que é grossa e que vem com águas miúdas. Quando um javali passa, a erva fica desorvalhada; mas existem maneiras de saber quando passou, e mesmo quando todo o campo se apresenta orvalhado, sabe-se por onde tal javali terá passado: perceber-se-á um rasto de orvalho muito menos intenso que o orvalho nas outras ervas em redor.
Se se souber como a noite foi, se algumas ervas tiverem orvalho apenas nas pontas, o javali passou quando a noite estava no início, porque todos os orvalhos quando caem, sempre começam na ponta das ervas. Mas mesmo sem orvalho é possível perceber quando o javali terá passado, pois no quebrar dos talos das ervas, quanto mais recentemente tiverem sido partidos, mais tem ainda o çumo em si.
Folha do Livro da Montaria original, que havia sido roubada em 1995 e em 2014 foi devolvida ao Arquivo Provincial de Lugo (Galiza, Espanha). Imagem do Ministério da Cultura de Espanha
Mais à frente fala-se da natureza e de bom senso, com exemplos práticos de cenários de muito difícil percepção no mato. É nesse contexto que o livro começa a dizer-nos que por vezes é necessário sair do assunto principal para que esse melhor se possa perceber – um pouco como neste artigo até aqui tenho feito, pois ainda não mencionei Sintra. O livro começa então a falar de Estronomia. É natural que não entenda a que se refere; o termo hoje é escrito como astronomia. Aí, o Livro da Montaria, do século XIV, começa a falar de astronomia mas numa perspectiva de astrologia: fala da natureza naturada, dos planetas a circularem e o número de anos que levam a fazê-lo, fala do oitavo céu, dos signos, do zodíaco, e de muito mais. O livro retoma posteriormente o assunto principal depois de falar de tempestades, ventos, chuvas, pedriscos, do posicionamento dos planetas e de como tal influencia a chuva, o vento, e como afecta tudo isso os talhares das unhas do javali, as pegadas do javali, na terra e nas ervas.
Quem escreveu este livro (ou compilou o conhecimento nesse presente, através de grandes conhecedores de Montaria), foi o Rei D. João I, aquele que fez surgir o Palácio da Vila com uma configuração mais aproximada do que hoje vemos. Com a sua constante presença em Sintra – em particular a partir da década de 1390 – é impossível não se ver estes conhecimentos descritos no Livro da Montaria serem aplicados pelas gentes de então, assim como pelo próprio Rei D. João I, na Serra de Sintra, mesmo que então essa não tivesse nos seus topos a verde cobertura que hoje tem. No Livro da Montaria conseguimos viajar até um passado distante, com muitos pormenores da vida, da vida real que os nossos antepassados aqui também viveram. Conhecendo esses pormenores, sentimos as histórias da Serra de Sintra de forma ainda mais deslumbrante. No meu próximo livro – o qual estava previsto sair antes de Junho, mas dada a situação que todos vivemos encontra-se com data de lançamento incerta – irei falar bastante sobre todos estes detalhes que aqui mencionei relativos ao Livro da Montaria.
Dentro destes livros do passado que nos fazem viajar no tempo e no sentir, há outros coevos ao da Montaria, e que, para que sinta ainda mais Sintra e o passado da nossa História, terei inevitavelmente que deles falar. Tanto os que falam de reis anteriores a D. João I, como aqueles que só surgiram por D. João I ter existido – tal como o Palácio da Vila, com as suas grandes chaminés brancas.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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