ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2019 ~
The Green Man, Sintra
e o Mestre Gil
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Gil Vicente e Sintra - 4ª Parte
The Green Man, Sintra e o Mestre Gil
~ Gil Vicente e Sintra (4ª Parte) ~
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 11 de Janeiro de 2019
Chegado para nós o gélido Inverno, chegamos nós também ao Triunfo do Inverno. Já na anterior parte deste conjunto de artigos tinha deixado a pergunta: e o porquê do Inverno? O porquê do seu Triunfo? Quando vi de tal feição / tão frio o tempo moderno / fiz um triunfo do Inverno... Era assim o lamento de Gil Vicente no Triunfo do Inverno: as saudades dos tempos passados, tempos em que a alegria em redor nos aquecia, avivava o coração com a labareda da vida.
E o seu triunfo – o do Inverno – não é único neste Triunfo. Na mesma obra o Inverno triunfa por uma segunda vez de forma física, embora que no mar: El mi triunfo segundo / son tormentas en la mar, / que luego quiero tratar, / las mas fuertes que en el mundo, / natureza pudo dar. Não tema: se na vida temos todos os nossos Invernos, aquele que é o da vida em si, aparece por uma só vez; e aqui, nesta farsa, o segundo triunfo do Inverno é o início do seu fim, sendo anunciado pelos cantos das sereias que no mar – “son tormentas en la mar” – habitam, e pelo próprio Inverno reconhecido: Y porque va enflaqueciendo / Mi fuerza delante vos (...) Sirenas, por mi amor / Que no canteis mas os pido. / Porque el Verao es venido, / Mi enemigo mayor, / Y Capitan de Cupido. E é precisamente aqui, no considerar do Verão como Capitan de Cupido que já se mostra como ludibriado certamente estará quem estas palavras se encontrar a ler. Mais adiante percebê-lo-á.
Decaído o Inverno, mesmo com os seus prévios triunfos, entra o Verão, anunciando a sua chegada. Pelo seu canto, também o Verão nos mostra as palavras com que Mestre Gil Vicente via então a Serra de Sintra: La Sierra de Sintra viene, / que estaba triste del frio, / gozar del triunfo mio, / que á su gracia conviene. / Es la Sierra mas hermosa / que yo siento en esta vida; / es como dama polida, / brava, dulce y graciosa, / namorada y engrandecida. / Bosque de cosas reales, / marinera y pescadora, / montera y gran cazadora, / reina de los animales. / Muy esquiva y alterosa / baliza de navegantes / Sierra que à sus caminantes / no cansa ninguna cosa. / Refrigerio en los calores, / de saludades minero, contemplacion de amores, / la señora à que yo mas quiero, / y con quien ando de amores. Nas falas seguintes, o Verão e a Serra de Sintra ficam trocando doces palavras do tempo que lhes custa um sem o outro.
Uma representação do Green Man na Igreja de Southwell, Inglaterra. Fotografia de Steve Cadman
Contudo – e como bem sabemos – nem que tudo para onde olhássemos fosse recoberto de ouro, existiria sempre alguém que teria o seu sisudo lamento por esse ouro não ter o brilho correcto. Assim acontece com o aparecimento – na sequência da troca de doces palavras entre o Verão e a Serra de Sintra – com um casal, com um Ferreiro e uma Forneira. Concertados ambos na maledicência e hábeis no seu consumar, iniciam um viperino rol de acusações sobre o Verão, rol perante o qual a Serra de Sintra intervém, educada e de nobre forma na contenção das suas emoções, falando de erudita forma: Meu Senhor [para o Ferreiro], contra verbosos / Noli contendere verbis (algo como “contra os faladores não contendas com palavras” (o que mui acertado é)). A Forneira, que até então tinha tido um arrazoado de baixíssimo nível, como que por pacto diabólico à Serra responde também e espantosamente, em latim, embora num daqueles últimos recursos que para quem honrado é, o recurso é descontextualizado, próprio de quem de contornos de honra não percebe: Qui semetipsum laudat / Despicit honorem suum (“quem se louva a si próprio desperdiça a sua honra”).
O Verão não se quer preocupar com esse tipo de minudências características da mesquinhez humana (e mais aninhada entre quem com males entre si se anima); o Verão preocupa-se até com o dinheiro que perde quem assim perdendo o seu tempo, perde também o tempo que ele traz consigo; o Verão quer, acima de tudo, é que se encontrem todos em festa. Mas lembra-se de repente: a Rainha, que en mi tiempo fue alumbrada... Que deu à luz! Há que visitá-la e dar-lhe um presente. Mas que oferecer, que oferecer?... Un presente singular, / que sin verguenza le dé. A Serra de Sintra oferece a sua ajuda até daquilo que dentro de si tem, e que tanto antes como agora continua a fascinar as pessoas: Eu tenho muitos tesouros, que lhe poderão ser dados, / mas ficaram encantados, / deles de tempo de Mouros, / deles dos antepassados.
Como tais preocupações apresentavam apenas o brilho que ofusca os escuros recantos onde de forma recôndita a falta de dignidade tem por hábito andar, o Ferreiro e a Forneira decidem ser hora de partir. E é na sequência da sua partida que surge o mais conhecido excerto de Mestre Gil Vicente relativo à Serra de Sintra, e dito pela boca da própria Serra de Sintra: Um filho de um Rei passado / dos gentios Portugueses / tenho eu muito guardado, / há mais de mil anos e três meses / por um mágico encantado. / E este tem um jardim / do paraíso terreal, / que Salomão mandou aqui / a um Rei de Portugal; / e tem-no seu filho ali. / Este será o presente, / e eu irei por ele asinha, / porque é para a Rainha / justo e conveniente. / O qual Príncipe virá / em pessoa aqui com ele, / que sabe as virtudes dele, / e como e quem o trouxe cá, / e quanto se monta nele. / E virá acompanhado / dessas cachopas Sintrans, / e de mancebos do gado, / Louçãos e elas louçãs, / com seu cantar costumado.
O Verão diz então que o jardim apresentado – para que mais fastio não cause pois ainda nem acabado está – conclui o seu triunfo, aquilo que na realidade foi o triunfo do Verão.
Na Quinta da Princesa, aquilo que tanto parece uma representação do Homem Verde como a vaga memória facial de um dos antigos proprietários: D. Fernando II. Fotografia de Frederico Almeida Santos
E chegamos agora ao desvelar de como foi ludibriado quem até aqui chegou. Entram quatro mancebos e quatro moças, todos muito bem ataviados em folia, dizendo esta cantiga: Quem diz que não é este / San João o Verde? Exactamente, São João, o Verde. Aos olhos de hoje não conseguimos compreender muitas das coisas do passado, ou tomamo-las como erradas. Mas se com os devidos e necessários filtros para se olhar para esse mesmo passado, somos capazes de entrar de forma mais profunda nas vidas que os nossos antepassados viveram. Na 3.ª parte destes artigos mencionei que a Rainha dera à luz em Abril de 1529. Em Abril, como é óbvio, não é Verão. E é o próprio Verão, na peça, a dizer que foi no seu tempo que a Rainha foi alumbrada, iluminada, que deu à luz. Além do mais, com o enfraquecimento do Inverno (após os dois triunfos desse), quem apareceu de imediato, trazendo os cânticos da natureza consigo, foi o Verão. E se – por exemplo – olharmos para outra peça do Mestre, aquela que tem o nome de Auto dos Quatro Tempos, vemos que esses “tempos”, as estações do ano, estão divididas entre Verão, Estio e Outono e Inverno. A forma como foi ludibriado foi ao ter interpretado este Verão de quem tenho falado ao longo de todo o artigo, como o nosso Verão; na realidade trata-se daquilo que interpretamos hoje como Primavera, e que então era tida com o termo Verão. No fundo, este Verão de que falei ao longo de todo o artigo representa o renascimento no ciclo da natureza, a sua renovação.
Frontispício do Auto dos Quatro Tempos. Gravura presente na Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente (...) Vam Emmendadas Polo Sancto Officio, edição de 1586. Biblioteca Nacional de Portugal
San João o Verde, que o Mestre coloca na boca de quatro moços e quatro moças, bem ataviados em folia e que perguntam quem diz que não é este / San João o Verde, é o representante do início da renovação desse ciclo da natureza, o mesmo João Verde que ainda é mencionado no século XIX como associado a Maio – e se tivermos em conta que o parto foi nos últimos dias (28 ou 29) de Abril, é, a par das anteriores apresentações de peças de Gil Vicente após o nascimento de príncipes ou infantas, muito provável que esta tenha ocorrido em Maio.
A beleza que se encontra em outras partes da Europa também cá em Portugal se consegue encontrar (e no caso, até dentro de todo o contexto de uma peça por Sintra inundada). Essa beleza precisa é de ser trabalhada para que ganhe o brilho do trabalho que em outros países já foi ao longo dos séculos sendo feito.
Já estamos próximos do fim do caminho do Mestre Gil. Assim como da sua vida.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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