ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2018 ~
Coração de Amante e a
Entrada no Inverno
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Gil Vicente e Sintra - 3ª Parte
Coração de Amante e a Entrada no Inverno
~ Gil Vicente e Sintra (3ª Parte) ~
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 07 de Dezembro de 2018
O Cavaleiro Portugal, chegado e encantado com Lusitânia (filha de uma ninfa) diz, antes de subir à Serra Solércia (Sintra), que a caça que matar será – depois de ver a beleza de Lusitânia – apenas o triste que há em si.
A ninfa que vivia nuns medonhos penedos junto à Serra de Sintra e que gerara, por seu amor com o Sol, aquela filha de nome Lusitânia, morreu do ciúme que o amor do Cavaleiro Portugal tinha por essa, pelo amor que o Cavaleiro Portugal tinha por sua filha. E antes de morrer a ninfa ainda insultaria o Cavaleiro Portugal dizendo-lhe que sua filha Lusitânia é senhora do avô daquele e “de vossa mãe cadela!” Diz ainda, a amarga ninfa, que naquela brava serrania que Sintra é, brava o hei-de desonrar.
O Mosteiro da Pena (no lugar do actual Palácio da Pena) e uma parte do Paço Real de Sintra (em baixo, à esquerda), quando Gil Vicente escriva as suas obras. Fragmento de desenho de Duarte d’Armas no início dos anos de 1500
Sim, se “só chegou agora” parecerá confuso. Mas na última parte desta corrente das Sintras de Gil Vicente, não acabei de contar como se deu o fim do Auto da Lusitânia. Nem que antes de seu fim encontramos.
O ciúme, tanto amargou a ninfa que vivia nos medonhos penedos junto à Serra de Sintra (“então [diz-nos o Licenciado, um intermediário de Mestre Gil] chamada de Serra Solércia”) que a matou, surgindo de sua sepultura na Serra deserta, a cidade de Lisboa. Mas não foi caminho aberto para que Lusitânia e o Cavaleiro Portugal se unissem. Por vezes parece até que quanto mais obstáculos existirem maior é a amplitude da paixão que surge invadindo nossa alma. Bom, mas pelo meio, no pedido de auxílio de Lusitânia aos deuses, aparece Mercúrio, eleito por aqueles e tido como Deus dos comércios do Mundo.
Estátua de Mercúrio na Villa Medici em Roma. Século XVI, autoria de Jean Boulogne
Mas como em tudo na vida... De seguida aparecem em cena não só Todo o Mundo como Ninguém. No seu diálogo – que muito estranho pode parecer a quem o leia de forma isolada – encontramos, entrelinhas, os desequilíbrios entre segurança e amor: quer de quem muito tem em matéria e pouco para dar ao coração; quer de quem muito coração tem e pouco de matéria para dar. Algo muito comum na classe dos artistas e dos sonhadores. Tal se torna claro quando as deusas discursando sobre como o futuro de Lusitânia será risonho por tudo o que ela merece; é então que Mercúrio toma consciência das suas obrigações de amante e refere até: Faça-se o que se requere / pois para minha nasceu; / Mas o que daqui se infere / maridá-la não espere, / porque não se usa no céu. As deusas acabam por tentar fazer Lusitânia ver que viverá de forma fria; e por seu lado, Lusitânia sente-se até mais segura com isso: ao menos serei segura / de se perder por mulheres. A Deusa Verecinta chega a dizer-lhe Porque quieres bodas frias, / y vivir todos tus dias / con hombre desnamorado? / Que este nobre Portugal / Es fundado sobre amor, / y es marido natural (...) y Portugal, si creer me quieres, / es baron de los barones, / servidor de mugeres / más que todas las naciones.
Representação de dois músicos militares. Gravura presente na Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente (...) Vam Emmendadas Polo Sancto Officio, edição de 1586. Biblioteca Nacional de Portugal
A partir daqui entra o toque do divino que normalmente na nossa vida real nestas situações não ocorre; Mercúrio chega a dizer a Lusitânia Se Portugal desejais, / sendo vós, eu o tomaria. E eis que por fim Lusitânia cede então ao amor, superando todos os seus receios e opções por coisas mais certas (que certamente a fariam mais infeliz). Lusitânia junta-se ao Cavaleiro Portugal, que quer, e pede que Deus sempre resguarde / e a seu Príncipe lhe guarde / como esperais e espero / e reine próspero e tarde [por muito tempo]. É assim que termina esta peça, dedicada – a par do Retábulo da Pena (no actual Palácio da Pena), também da Serra de Sintra – ao Príncipe D. Manuel, filho de D. João III.
Curioso é também que no momento em que o Cavaleiro Portugal julgava ter perdido Lusitânia para sempre, o julgou pela satisfação do amor que lhe tinha, de ela lhe ter pedido que ele fosse para a Serra de Sintra, cumprir de desejo a que acedeu. Felizmente foram este enamorado e seu coração reconhecidos.
Um outro gaiteiro (diferente daquele presente na 1.ª parte desta sequência de artigos sobre Gil Vicente e Sintra). Gravura presente na Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente (...) Vam Emmendadas Polo Sancto Officio, edição de 1586. Biblioteca Nacional de Portugal
Estávamos em 1532 quando este Auto da Lusitânia foi apresentado, tendo muito de Sintra em si. Para o próximo passo – e talvez o maior no que às Sintras de Gil Vicente diz respeito – é necessário voltarmos a 1529. Nesse ano, a Rainha D. Catarina deu à luz, em Abril, a Infanta D. Isabel. A Primavera do auto que se segue manteve-se até aos nossos dias pelo seu florido, pelas suas alusões, pelo seu encanto; a Infanta D. Isabel ficou-se, infelizmente, pela Primavera da vida, pois faleceu em Julho desse mesmo ano, tendo no entanto proporcionado que Mestre Gil tenha feito o auto que até hoje nos chegou ainda em florido de Primavera, mas não só. E não só pois chegou-nos com o título de O Triunfo do Inverno, que dentro de dias também nos chegará.
Embora o Auto da Lusitânia tenha muito de Sintra, particularmente pelo amante Cavaleiro Portugal aí caçar enquanto a sua amada se deixa convencer a casar com outro, o Triunfo do Inverno é a grande Sintra de Gil Vicente, pela oposição de estações do ano – e seus significados – e pela forma como a Serra era por Mestre Gil sentida: em duas peças diferentes, em dois diferentes autos, é a Serra de Sintra qualificada com o termo brava pelo Mestre.
A Quinta dos Pisões em Sintra, cujo pórtico estava prestes a surgir quando Gil Vicente se eclipsou. Fotografia de Miguel Boim
Mas antes de lá se chegar, há que percorrer o caminho que Mestre Gil muitas vezes terá feito e onde muito observaria. Nesse caminho, da Cidade de Lisboa à Serra de Sintra, Gil Vicente via – já naquilo que é hoje considerado como Sintra – traços dos tempos modernos, dias em que a alegria e a tradição, naquele ano de 1529, já há muito se tinham perdido. Batia a saudade dos tempos passados – tal como a nós hoje, dos nossos passados tempos de vida. É aqui sim, que Mestre Gil fala do que Portugal até há pouco (início do século XVI) fora, e da alegria que era então sentida também no concelho de Sintra; assim que entra em palco, assim que começa o Triunfo do Inverno, o Mestre encontra-se só, perante a audiência, e diz: Em Portugal vi eu já / em cada casa um pandeiro, / e gaita em cada palheiro; / e de / vinte anos a cá / não há aí gaita nem gaiteiro. / A cada porta um terreiro, / cada aldeia dez folias, / cada casa atabaqueiro: / e agora Jeremias / é nosso tamborileiro. / Só em Barcarena havia / tambor em cada moinho, / e no mais triste ratinho / s’enxergava uma alegria / que agora não tem caminho.
O Mestre torna seu falar ainda mais claro ao dizer: Se olhardes às cantigas / do prazer acostumado / todas têm som lamentado / carregado de fadigas / longe do tempo passado. / O de então era cantar / e bailar como há-de ser / o cantar para folgar / o bailar para prazer; / que agora é mau de achar.
E o porquê do Inverno? O porquê do seu Triunfo? Quando vi de tal feição / tão frio o tempo moderno / fiz um triunfo do Inverno / depois será o do Verão. O do Verão? Sim, o do Verão. E que melhor sítio existirá para experimentar a frescura no Verão senão a... Bem, não revelarei mais. O resto ficará para a próxima parte.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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