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Artigos no Jornal de Sintra, ano de 2018, de Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra.jpg

ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2018 ~

Terra de Cardos e de Pedras
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Gil Vicente e Sintra - 1ª Parte

Terra de Cardos e de Pedras
~ Gil Vicente e Sintra (1ª Parte) ~ 

por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 28 de Setembro de 2018

    Todos nós, em determinado momento das nossas vidas, estivemos em alguma circunstância a qual sentimos que era maior do que nós. E nesses momentos, nessas circunstâncias, por entre a floresta escura de receios, conseguimos seguir o trilho que nos levou à nossa superação.

    Sendo que não terá sido a sua primeira vez, e sendo que por certo foi lidando de forma faseada para públicos cada vez mais importantes, como se terá sentido Gil Vicente quando actuou – actuou –, sozinho, completamente só, apenas perante o Rei, as duas irmãs deste e sua mãe, a Rainha, e o recém-nascido Príncipe? Aconteceu ao longo de maior parte de sua vida preparar autos, comédias, farsas, para celebrarem o nascimento de um Príncipe de Portugal ou dos infantes; mas mais importante que isso e para que consiga entrar dentro do corpo do ser humano que está por detrás do nome que felizmente resiste na História, é importante contar-lhe que, além de ter escrito O Monólogo do Vaqueiro (também conhecido como Auto da Visitação), foi o próprio Gil Vicente quem o interpretou, tendo apenas à frente a Família Real.

    O resultado, de ter ali estado naquele monólogo, fazendo rir e sorrir a Família Real foi O Monólogo do Vaqueiro ter sido um sucesso. Ecoou no coração de quem estava presente, da mesma forma que hoje algumas coisas às quais assistimos nos deixam a vontade de querer consumir mais, de querer consumir mais da produção que o peito do ser humano que aquilo criou, exala. E com Gil Vicente assim se passou.

A figura do lado esquerdo da imagem e ao fundo com véu negro tem sido identificada como a Rainha D. Leonor; a Rainha Velha é vista como a impulsionadora de Gil Vicente enquanto dramaturgo. Chegada das Relíquias de Santa Auta à Igreja da Madre de Deus, c. 1522. Museu Nacional de Arte Antiga

Gil Vicente e Sintra - Miguel Boim - O Caminheiro de Sintra - Jornal de Sintra - 1..jpg

    Entrava Gil Vicente, o dramaturgo, em todas as suas peças? Não se lo sabe, mas certo é que em algumas delas aparece a apresentar a peça. Digamos que há sempre, ou quase sempre, um intróito com uma das personagens a inteirar o público daquilo a que estão prestes a assistir. Mas por vezes a personagem que o fazia era o próprio autor. E há casos muito interessantes, que lá mais para a frente, em outras partes, veremos.

    E ainda que não entrasse nas suas peças é necessário ter presente que o que vemos nos dias de hoje e que está por detrás de um ensaio, naquele tempo não existia, não proporcionando assim as comodidades que hoje permitem a um actor ir para um ensaio melhor preparado ou totalmente pronto para esse. Pressupor-se-á assim que a interacção de Gil Vicente com os seus actores seria intensa (em todas as suas peças os picos, os altos e baixos de emoções e arrazoados, assim como os contrastes entre situações e modos – os quais por oposição provocavam o humor – eram permanentes)  e demorada.

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O coração do Paço Real de Sintra nos tempos de Gil Vicente. Fragmento de desenho de Duarte d’Armas no início dos anos de 1500

    E como é que Gil Vicente aparece n’O Monólogo, em frente da Família Real? Suspeita-se que tenha sido através da querida Rainha Velha – título oficioso por já reinar novo rei e nova rainha –, D. Leonor, viúva de D. João II. E se D. Leonor ajudou a Santa Casa da Misericórdia a aparecer através de Frei Miguel Contreiras – que nas madrugadas ia para as margens do Tejo procurar cadáveres que dessem à costa, para assim dar um enterramento cristão àquelas fluviais almas – também se dedicou a auxiliar aqueles que sentia terem capacidades de prosperar nas suas artes. Não se sabe ao certo de onde veio, mas há quem assuma um ourives que trabalhando para a Rainha viveu nas casas junto ao Paço de Santo Elói (listado como seu “servidor áureo” entre 1509 e 1513), como sendo ele próprio, visto que o nome desse ourives era Gil Vicente. Em relação à possibilidade do ourives (sendo que existia ainda um grande número de Gis Vicentes) é curioso que, no caso de ter sido o mesmo, e nos tendo deixado o legado de suas peças de teatro, ter-nos-á deixado também uma das melhores peças portuguesas presentes no Museu Nacional de Arte Antiga: a Custódia de Belém (se não a conhece será um bom motivo para visitar o Museu Nacional de Arte Antiga, com entrada gratuita ao Domingo de manhã para cidadãos nacionais (comprovativo necessário)). E ainda em relação a esta possibilidade do ourives e acerca do início de vida artística do nosso Gil Vicente, o primeiro auto, aquele em que ele aparece sozinho perante o Rei e a Rainha, é de 1502, cerca de sete anos antes de quando o Gil Vicente ourives aparece listado como servidor da Rainha Velha.

...vinte anos a cá / não há aí gaita nem gaiteiro. (...) Só em Barcarena havia / tambor em cada moinho, / e no mais triste ratinho / s’enxergava uma alegria. Gravura presente na Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente (...)  Vam Emmendadas Polo Sancto Officio, edição de 1586. Biblioteca Nacional de Portugal

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    Mas Mestre Gil era muito mais do que alguém com grandes capacidades para executar algumas poucas funções. Gil Vicente era ele próprio um gerador de fantasia. No ano de 1520 esperava-se a entrada em Lisboa do Rei D. Manuel e da Rainha. O Mestre era reconhecido pela sua fantasia a ponto tal que o Rei deu indicações para que se seguissem todas as sugestões do Mestre. Quando se viu chegado o dia da entrada do Rei e da Rainha, havia inclusivamente no Tejo uma caravela mal aparelhada e de velas esfarrapadas e pintadas de más pinturas de que saíam grandes fumaças e fogos artificiais (...) e muitos trovões; e a caravela sem governar ora através ora a popa (...) e os diabos fazendo coisas de muito prazer com que houve a maior festa do recebimento... No dia seguinte, o Rei e a Rainha tinham muitas plataformas ou palcos por entre os quais haviam de passar. Num deles era visível um homem deitado, adormecido, do peito do qual saía uma grande árvore dourada (a Árvore de Jessé, brotando do peito de Adão) tendo essa árvore representações de todos os reis e de todos os profetas, acima desses estando Deus com os seus anjos, estes últimos tocando seus instrumentos musicais. Ao lado desse palco, um outro muito coberto de ramos e arvoredo, com muitas fontes de água, que representava a Ilha da Madeira; e no meio uns ricos aposentos em que viviam quatro fadas e em uma rica câmara estava um berço dourado que embalavam quatro sereias cantando suavemente; e as fadas falaram em lugar da Ilha, oferecendo-se para criarem o filho ou filha primeiro que [a Rainha] parisse, e [que] seria por elas fadado...

 

    Essa entrada do Rei e da Rainha, essas festas, foram muito mais do que isto, e muito mais engendrado por Mestre Gil. E se sabemos que o Paço Real de Sintra nos anos de 1500 teve uma grande vida, muitas festas principalmente no reinado de D. Manuel, é natural que – ainda para mais devido a toda a fantasia e cavalaria que o património de Sintra em nós evoca – os olhos de nossa mente se deixem levar pelos mais belos cenários.

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Gravura de 1586, sendo o frontispício do Auto da História de Deus. À direita, Satanás, que no auto aparece mascarado de ermitão no deserto, referindo a Cristo a tal terra de cardos e pedras. Gravura presente na Copilaçam de Todalas Obras de Gil Vicente, edição de 1586. Biblioteca Nacional de Portugal

    E à medida que vamos percorrendo o espírito de Mestre Gil nas memórias que dele temos, mais começamos a encontrar de relações directas ou indirectas com Sintra.

    D. Beatriz, filha do Rei D. Manuel e associada ao coração de Bernardim Ribeiro por algumas partes da academia – e este a Sintra e seu Paço associado, através não só de Garrett no século XIX, mas também das lendas que se foram formando – na noite em que pela última vez dança com seu pai, o Rei D. Manuel, imediatamente antes da sua partida enquanto já Duquesa de Sabóia, foi também a noite em que se representou Cortes de Júpiter, de Mestre Gil.

    Se nas palavras nos tornarmos mais íntimos da relação entre Gil Vicente e Sintra, começaremos a a pouco e pouco descobrir – no espreitar por entre a cortina do teatro da vida –, aqui e ali pontos muito interessantes: dizia Mestre Gil, perante o público, numa das suas tragicomédias, num dos seus intróitos: Em Portugal vi eu já / em cada casa um pandeiro, / e gaita em cada palheiro; / e de / vinte anos a cá / não há aí gaita nem gaiteiro. / A cada porta um terreiro, / cada aldeia dez folias, / cada casa atabaqueiro: / e agora Jeremias / é nosso tamborileiro. / Só em Barcarena havia / tambor em cada moinho, / e no mais triste ratinho / s’enxergava uma alegria / que agora não tem caminho. O Mestre não encanta só com as emoções e com os contrastes de atitudes que provocam o riso; o Mestre dá-nos também, passados cerca de 500 anos, traços de como eram as vidas e os hábitos nestes espaços que ainda hoje são percorridos – assim como tradições que então eram sentidas como perdidas (tal qual como hoje).

    Mas antes de irmos mais fundo nas memórias de Mestre Gil que mais profundamente se relacionam com Sintra, há que lembrar que Satanás, vestindo-se de ermitão e falando com Cristo no deserto (Auto da História de Deus), Lhe diz que toda a terra (...) de cardos e pedras, entre Torres Vedras e Sintra, é sua. Não é, mas o Mestre certamente já sabia que por vezes tal nos pareceria. [continua]

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por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra

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