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ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2020 ~

Fevereiro, Mês de Amor

Fevereiro, Mês de Amor
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 21 de Fevereiro de 2020

    Chegado o 14 de Fevereiro, sinto-me – pelo simbolismo que tem – impelido a fazer uma evocação sobre o amor, particularmente sobre partes da nossa história que podem levar os meus contemporâneos a pensar sobre o amor, por oposição a interpretá-lo de forma rotineira, ou até a deixarem-se ir em cegas paixões a que erradamente chamam amor.

 

    Quando se fala de bastardos, de filhos não legitimados, percebemos que algo saiu da normal rotina do casamento - quer do que estava previsto, quer do que fora já consumado. Mas na realidade nunca questionamos se algum desses casos teve um legítimo amor.

 

    Para tal, tanto pode esse amor ter sido despertado naturalmente, como a paixão pode ter começado a arder de uma pequena centelha surgida no normal correr de um dia. O amor ou a paixão podem para isso ter até tido prévias condições para terem surgido. Isto é, o próprio relacionamento já existente entre duas pessoas pode ter propiciado o despertar de um novo amor ou de uma nova paixão: por dolo do trato na já existente união entre as duas pessoas, por ausência de interesse intelectual e/ou físico, ou simplesmente por uma das pessoas se ter tornado completamente diferente daquilo que aparentou ser quando para si puxou a outra. Estes são alguns dos casos que propiciam o surgir de novos amores, mais até do que novas paixões.

 

    Até que ponto é erro ou pecado, fazer-se alguém infeliz? Ou até: até que ponto é erro ou pecado, deixar-se ser infeliz? Até que ponto é erro ou pecado, deixar os sonhos escaparem com o sopro de Deus (ou do Universo) que é insuflado quando nos sentimos verdadeiramente felizes por amar de forma pura e por sermos puramente amados?

Fevereiro, Mês de Amor - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Artigos no Jornal de Sintra

As cabeceiras dos túmulos do Rei D. João I e da Rainha D. Filipa de Lencastre, no Mosteiro da Batalha. Fotografia do autor

    O pai do Rapaz da Praça dos Canos casou-se no século XIV, nos anos de 1300. Na verdade, não era feliz. Tinha sido obrigado a casar. Quem o fazia feliz era alguém que tinha estado sempre em companhia da sua esposa. «Este verdadeiro amor houve (...) e como se dela enamorou, sendo casado e ainda infante, de maneira que para dela no começo não perdesse de vista nem de fala estando ausente, como ouvistes, que é a principal razão de se perder o amor, nunca cessava de lhe enviar mensagens...» Aqui adaptei alguns termos para que possa compreender o sentido que a frase tem nos dias de hoje. E de certeza que percebeu.

 

    O sonho de se amar, sobreveio quando a sua esposa faleceu. Sobreveio quando aquela com quem o pai do Rapaz da Praça dos Canos tinha sido obrigado a casar, faleceu. Aquele homem que tinha casado infeliz e a rapariga que dele recebera mensagens quando ausente, poderiam finalmente agora viver juntos e sem impedimentos.

 

    Mas esta história tem um triste fim. Essa rapariga viria a ser degolada, cortar-lhe-iam a cabeça. O pai do Rapaz da Praça dos Canos nunca a esqueceu. No seu próprio túmulo mandou que fossem colocadas, esculpidas, cenas da vida dos dois. Mandou que fosse esculpido no túmulo da rapariga o Dia do Juízo Final, em que bons e maus eram devidamente separados, uns encaminhando-se para o Paraíso, outros caindo na bocarra voraz do Inferno. No topo de tudo, numa janela e separados apenas por uma coluna de pedra, Pedro, de mãos juntas, jura eterno amor a Inês.

 

    Esta é uma das mais belas histórias da nossa história.

O Coração de Dom Duarte - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Jornal de Sintra - 2..jpg

D. João I (pai de D. Duarte) em gravura elaborada – através da efígie de seu túmulo – por um viajante estrangeiro no final do século XIX

    O Rei D. Pedro I «nem depois que reinou lhe aprouve receber mulher», conta-nos a crónica. Existiu no entanto um único caso conhecido, em que se tendo envolvido com uma mulher, essa concebeu um filho seu. A esse filho foi dado o nome de João, sendo entregue ao cuidado de um cidadão de Lisboa que vivia junto à Catedral, na «Praça dos Canos».

 

    D. Pedro certamente ficou com um sentido de justiça ainda mais apurado. Na história que se cruza com a história de Sintra vemos isso através dos dois escudeiros que roubaram um judeu que andava pelos montes a vender especiarias. Foram mandados degolar pelo Rei no Paço de Belas. Depois de apanhados, perante si, o Rei tentava extrair a verdade da boca de ambos, caminhando de um lado para o outro, vindo-lhe por vezes as lágrimas aos olhos por terem sido com ele criados e pelo fim que a injustiça que haviam cometido merecia – e que se concretizou.

Perspectiva do Palácio da Vila desenhada nos primeiros anos de 1500, guardando suas lógias frias

Fevereiro, Mês de Amor - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra - Artigos no Jornal de Sintra

    Passadas décadas, o Rapaz da Praça dos Canos é obrigado a entrar numa guerra, deixada acontecer – se assim se lhe pode indirectamente atribuir – por um meio-irmão seu. Mas por um meio-irmão que era filho legítimo, e não um bastardo como ele era. Este bastardo, o Rapaz da Praça dos Canos, foi no entanto aquele que o povo escolheu para que o Reino de Portugal se salvasse.

 

    Ao longo de uma aventura medieval – que para quem a leia, nada mais é que o recontar da nossa história – o Rapaz da Praça dos Canos trava inúmeros combates, toma as mais difíceis decisões, fala com eremitas emparedados, e acaba por se tornar em D. João I, Rei de Portugal.

 

    D. João I casou com Philippa of Lancaster, que após casamento na Catedral do Porto em 2 de Fevereiro de 1387, se tornou naquela que conhecemos como Rainha D. Filipa de Lencastre. O selar do casamento deu-se a 2 de Fevereiro, mas as festas realizaram-se apenas dias depois, no dia de São Valentim, dia 14 de Fevereiro.

 

    D. João e D. Filipa, para além da Ínclita Geração fariam brotar muito do que em Sintra se vê. Fariam brotar em eremitas da Serra de Sintra, das mais belas edificações que aqui existiram. Fariam brotar também, o amor que os filhos lhe tinham, bem notório nas palavras que o Rei D. Duarte escreveu sobre o amor que os filhos sentiam por D. João I.

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Dia do Juízo Final: no canto inferior direito, o Inferno; no canto superior direito, uma janela com D. Pedro e de D. Inês de Castro. Túmulo de D. Inês de Castro no Mosteiro de Alcobaça. Fotografia do autor

    Assim também se passou com o amor de D. Duarte por sua mãe, por D. Filipa de Lencastre, o qual fez com que, à beira da morte dessa, o próprio D. Duarte saísse de um estado depressivo em que se encontrava já há anos, e estado o qual fazia com que lhe aconselhassem que frequentasse mulheres e bebesse vinho para espairecer. Creio que as recomendações não-especializadas não mudaram muito em seiscentos anos.

 

    Relativamente à evocação do amor deste 14 de Fevereiro – e no seguimento daquilo que tenho aqui hoje contado – existe muitas vezes um apequenar da figura do homem do passado quando esse, tendo um casamento contraído, acabava por gerar o que eram conhecidos como bastardos, o que, por sua vez, eram vistos apenas como um produto do satisfazer do desejo intenso da líbido. Mas seria realmente sempre assim? Não o sabemos, nem o podemos garantir. O que se sabe, como o disse, é que isso é visto quase sempre, quase sem excepção, como esse desejo de carne húmida e quente, que tão intenso desequilíbrio de emoções gera no ávido consumir de dois corpos que se desejam.

 

    Na música, na pintura, na literatura, nas mais belas criações, encontramos por vezes, nas obras excepcionais, um arder dos sentidos que consumimos intensamente com o nosso coração e com os nossos sentidos. É sabido também, em termos teológicos, que o Diabo, o mal, entra pelos sentidos. E não basta terem-se princípios, pois um princípio pode ser bom para quem o tem, mas no seu aplicar ser mau para aqueles que essa pessoa rodeiam, ou que até, muitos afecta de malévola, egoísta, maneira.

 

    Mas existe algo grandioso que vai muito além dos sentidos: a nossa concepção de amor. A nossa concepção de amar. De ver sorrir e de fazer sorrir, tendo em vista apenas o pequeno e simples prazer de dar e receber. Esse prazer que é projectado na fantasia da mente como eterno, dura por vezes poucas semanas, meses, ou anos, mas foi em momentos tido como sempiterno.

 

    Outras vezes dura o resto da vida. Mesmo até que nunca consumemos em vivência contínua esse sorrir e fazer sorrir para com a pessoa que também o sente em direcção a nós. E algumas vezes, gera – além do amor verdadeiro – coisas que ficam para sempre.

 

    O Rapaz da Praça dos Canos, com a celebração do seu amor inglês – Filipa de Lencastre – num 14 de Fevereiro de há muitos, muitos anos atrás, legou-nos paixões monumentais – de monumentos físicos e imateriais  – que em Sintra para sempre vamos sentir.

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por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra

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