ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2016 ~
Encantos da Trindade
de Sintra
Encantos da Trindade de Sintra
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 03 de Junho de 2016
Saindo da estrada que nos traz de Lisboa a Sintra e passando a entrada do largo da antiga Feira de São Pedro - em tempos idos chamado de "Chão das Maias", possivelmente por antigamente ali se cantarem as Maias (referentes a Maio, como cantar as Janeiras para Janeiro) -, mais acima, no alto, encontramos à esquerda o largo da medieva Igreja; logo a seguir, um pequeno café com mais de cem anos, chamado Mourisca. Dobramos a sua esquina assim voltando à nossa esquerda e entramos num sossego muito maior. Mais à frente o chão torna-se numa branca calçada que se lança à nossa frente por entre verdes muros. Serpenteante segue pelo meio de uma colina da Serra, dando-nos de um lado uma extensa paisagem a Norte entre folhas observável e, do outro, um arvoredo que esconde penhascosos lugares e que leva a nossa vista a perder-se antes dessa encontrar os cumes daqueles montes.
Um frade trinitário de Sintra desenhado na década de 1820.
A cruz da Ordem da Santíssima Trindade tinha por norma os seus braços horizontais a azul e a sua haste (peça vertical) a vermelho
Nesse caminho - afastado da secular via de entrada em Sintra - encontraríamos no século XIV sombrios vales com nascentes que espalhavam a calma luz do dia pelo musgo cobrindo as rochas. Mas no nosso tempo, no tempo presente, há uma parte do entre muros - do lado esquerdo como quem segue esse manso caminho até à Igreja de Santa Maria - em que encontramos um longo edifício rosado que tem um primeiro andar. A fachada tem pequenos contrafortes e termina naquilo que aparenta ser a entrada de uma igreja. Por detrás desse corpo suportado por contrafortes encontra-se um vale, um vale que sobe por entre os montes do Castelo dos Mouros e do Parque da Pena. Esse rosado corpo de pedra esconde esse vale, escondendo também muitas histórias. Algumas delas com quase setecentos anos.
São histórias que fazem parte da história de Portugal, fizeram parte de manuscritos, da tradição oral dentro das comunidades religiosas, e fizeram também parte das crónicas que foram ao público erudito legadas em séculos passados. Mesmo assim poderão parecer histórias de encanto. Um encanto de lenda e do aspecto lendário do que aí foi na história vivido.
Já depois de passar o rosado corpo de pedra e olhando-o para trás, a caminho da Igreja de Santa Maria
Embora muitas pessoas nos dias de hoje não acreditem na abnegação do corpo - do corpo e não do "comodismo", como hoje sentem o seu - em prol de nobres sentires e de nobres crenças, existiram seres humanos no passado - num passado medieval - que por quererem estar mais perto de Deus e das formas que Esse tinha criado sentiam que deviam largar a maneira como viviam - quer fosse em casas próximas de Igrejas, em cubículos junto de ermidas, em conventos ou mosteiros - para irem viver no meio da natureza, sentindo-se assim muito mais próximos de Deus, e a Ele nessa vivência entregando sua alma e seu corpo. A Divina Providência haveria de conseguir sustentar com o mais parco que fizesse aqueles corações baterem.
Foi assim que a história daquele rosado corpo de pedra no caminho para Santa Maria começou: no século XIV, um pequeno grupo de indivíduos, sabendo que naquele lugar se prestava culto numa pequena isolada ermida daquele vale, e sabendo que esse tinha algumas pequenas covas, decidiram abandonar os lugares de onde eram originários e foram para aquelas verdes colinas de nascentes repletas viver naquelas covas.
Perspectiva do vale para a parte do Convento que se esconde dos transeuntes
Na sua desprendida e solitária vivência tendo por companhia os cantos das aves e o murmurar dos ribeiros que corriam montes abaixo, foram com as pedras que esses também davam, pejando aquele vale com pequenos e isolados lugares de culto, com pequeníssimas ermidas.
Armas de Portugal e a cruz da Ordem da Santíssima Trindade (século XVIII)
Como todo o caminho daquele que o vive com todo o seu ser mais tarde ou mais cedo lhe providencia o que aquele precisa para cumprir os desígnios de Deus, para levar os feitos de homens passados, os feitos do Criador através dos homens ao longo do tempo, assim, através daquela simples vivência, também aqueles homens tiveram um dia a oportunidade de criar, de fazer erguer, um edifício, um espaço, onde o homem se pudesse ir entregar, para dedicar todos os bateres de seu coração a Deus: foi assim e através da admiração do Rei D. João I pela vivência daqueles homens que ali surgiu o Convento da Trindade da Serra de Sintra.
Os contornos de lenda não se ficam pela névoa da Serra, nem pelo encanto dos eremitas que naquele vale viveram. Os contornos de lenda espalham-se por um sem fim de contares que a história de Portugal nos legou acerca daquele lugar. Desde os lagos cristalinos entre o meio da natureza formados, até aos aquedutos secretos que se ligavam a certas ermidas, até Reis e Rainhas terem ido ali buscar os seus confessores que com esses sempre andavam. E até aos relatos das coisas sobrenaturais que afligiram alguns dos frades que ali viveram. Não esquecendo um sobrinho de Inês de Castro que naquele vale foi sepultado, ou da forma supersticiosa como foram vistos alguns dos priores do Convento.
Hoje optei por falar de um espaço, um lugar, que de ano para ano felizmente vai recebendo obras de conservação e assim sendo preservado, mas que vai sendo cada vez mais esquecido na memória que nos fica do tempo passado. Não haveria fim às páginas que teria de utilizar para lhe contar muitas destas lendárias histórias, destas histórias de encanto. Mas certamente que “desta ou daquela” lhe falarei no futuro aqui neste espaço, neste recanto do Jornal de Sintra que também serve para avivar as emoções e sentimentos e fazer com que as pessoas tenham vontade de proteger a história de Sintra que, com o passar dos anos, se vai esbatendo no ocupado viver das pessoas. No ocupado viver das pessoas; e lembrando as seculares palavras de um frade que no Convento da Trindade viveu…
Oh! Quanto é melhor o deserto* que a Corte? Quanto aquela tem de perigosa, tem este de seguro. Tudo quanto me podia dar, logro aqui com mais perfeição. As flores desta montanha são mais viçosas, e permanentes. As aves me recreiam mais com o seu engraçado canto; e se as que mais se estimam vivem nas Cidades presas, nesta solidão, pela liberdade, as logro com preferência. Nos povoados andam de tropel os perigos, e só os montes se fizeram para os descansos… (…) Oh quanto, oh quanto é bem aventurada a solidão!
* Aludindo a ermo, lugar isolado, como aquele vale assim o era.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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