ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2016 ~
D. João II e os
Campeões Europeus
D. João II e os Campeões Europeus
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 26 de Agosto de 2016
Para alguns poderá até parecer grosseiro realizar a ponte presente neste título, mas a verdade é que esta ponte tem chão, e é espaço lendário, não havendo outra maneira de o dizer. E tudo começa há muito tempo atrás, no tempo do primeiro D. João, Rei de Portugal.
Mas antes é necessário compreendermos o espírito dos lugares. Os lugares, por muito diferentes que hoje em dia se encontrem, continuam a guardar a memória histórica daquilo que lá foi vivido. Quando essa memória vem à superfície do tempo presente, o lugar poderá apresentar-se da forma que se apresente; não consegue no entanto essa imagem diminuir aquilo que lá foi vivido. E tudo o que se relacione, que se encontre ligado com D. João II, com o crudelíssimo Príncipe Perfeito, ganha sempre uma tremenda intensidade.
No centro da imagem, o Esguicho (a coluna manuelina); ao fundo, os arcos do Palácio; a primeira árvore à direita dos arcos mostra a rampa que leva à passagem de arcadas que dá para o campo do jogo da péla
Recordo que o Príncipe Perfeito assumindo a regência iniciou aquilo que aos olhos de seu sentir era encarado como o purgar da nobreza: eliminou uma série de nobres, entre os quais se encontravam tanto o irmão de sua esposa – a Rainha D. Leonor –, como o cunhado dessa, o Duque de Bragança. Poderá dizer-se que a sua sede de justiça não tinha limites. E também se pode dizer que era pelo povo amado devido a isso mesmo.
E note que apesar do caso que citei, a Rainha se manteve sempre fidelíssima ao Rei, tendo – no tocante a Sintra – inclusivamente passado onze dias junto da antiga ermida da Pena (no lugar onde hoje se ergue o Palácio da Pena), com o seu séquito, os seus homens, em tendas em redor da ermida.
Houve até quem no século XVII, querendo arranjar explicação para a origem da Sala das Pegas – e aqui recordo a Lenda das Pegas e D. João I –, tenha tentado dizer que a sala tinha esse nome por certa vez D. João II ter tentado agarrar lá uma dama que se libertando do Rei em tom jocoso disse “pega, pega”.
Vista do local onde hoje se situa o posto do Destacamento Territorial de Sintra da GNR, para a passagem (arco ao fundo) que dá para a parte da frente do Palácio
Ainda de D. João II e Sintra, lembro a Lenda do Esguicho (antigo fontanário) que é associada a uma celebração que certa vez se deu em Sintra, em que D. João II teria pedido para todos os camponeses da região trazerem um balde de leite para que a fonte o jorrasse, numa demonstração de riqueza. Mas essa lenda também não é para o artigo de hoje, e a seu propósito, e da sua atribuição a D. João II, basta lembrar que o Esguicho – o pilar, a fonte – é considerado manuelino, o que torna a lenda num mito, mito no sentido daquilo que é falaz.
Mas a mais forte ligação de D. João II a Sintra é o facto de seu pai, o Rei D. Afonso V, que tinha nascido no Palácio da Vila, aí também ter morrido. E decorrente desse facto, foi D. João II coroado Rei de Portugal no Palácio da Vila. E em que parte do Palácio foi o Príncipe Perfeito coroado Rei de Portugal? Num espaço que fica voltado a Norte, e que se encontra escondido de quem se encontre no terreiro principal, voltado para os arcos da entrada do Palácio. Quem quer que olhe para a fachada do Palácio vê, do lado direito uma rampa que leva quem por ela siga através de uma passagem, umas arcadas, uma espécie de túnel. Esse túnel dá para aquilo que se poderá considerar como as traseiras do Palácio da Vila. Aí chegando, deparamo-nos com um terreiro estreito, mas longo em sua extensão, onde se levantam grandes plátanos e onde temos, à direita, o posto do Destacamento Territorial de Sintra da Guarda Nacional Republicana.
Foi nesse espaço que se deu a coroação de D. João II. E esse espaço é chamado – como o Conde de Sabugosa nos transmitiu – de campo ou terreiro do Jogo da Péla.
Tendo à esquerda o vitral da capela do Palácio e ao fundo a torre que dentro de si guarda a Sala dos Brasões, este estreito terreiro deita à direita sobre o campo do jogo da péla
O Rei D. João I – que realizou as grandes obras que contribuíram para o Palácio de Sintra ser hoje o que é – já em seu tempo dizia que os homens de armas faziam bem em jogarem o jogo da péla pois permitia-lhes tender (esticar, despregar) os membros.
O jogo da péla tinha vários modos ou modalidades; pode dizer-se que era um conjunto de vários jogos diferentes todos jogados com uma péla, uma bola. Em algumas descrições percebe-se que por vezes era violento, em outras que noutros modos se tinha de ter mais perícia; utilizavam-se várias maneiras nas várias modalidades de fazer chegar a bola onde se desejava, empregando para tal e para diferentes abordagens do jogo, diferentes termos: pulo, revés, péla palmária, serviço, chaça, e existiam até – entre muitos outros – a falta e o tento.
Na região de Lisboa já no século XVIII se empregava uma “seringa de ar” para encher a péla, a bola; e aqui jogava-se normalmente num espaço aberto, que por vezes também era conhecido como esferistério.
Dentro da dita passagem que atrás de nós nos leva para o campo do jogo da péla, olhando as figuras que se encontram na rampa que desce para a parte da frente do Palácio da Vila (gravura da década de 1820)
O que é certo é que alguns desportos tomam para si serem descendentes do jogo da péla. Um deles é o futebol. E é inegável que o que se passou em Julho último uniu todas as pessoas que vivem neste território a que damos o nome de Portugal. É verdade que temos muito em que pensar, muito com que nos preocupar, especialmente com aqueles que não têm as condições requeridas – sejam materiais, sejam emocionais – para que consigam viver com a dignidade com que qualquer ser humano deve viver. Mas não podemos ignorar que o que foi alcançado o foi numa indústria, num mercado, que vale milhões e que consegue projectar o nome dos lugares e países para todo o resto do Mundo, proporcionando meios para que esses mais se desenvolvam, proporcionando meios para que esses diminuam o número de seres humanos carenciados, sejam quais forem as suas carências. Para além do – raro – sentimento de união entre as pessoas que vivem neste país, acabámos por entrar numa vaga que elevou o nome de Portugal bem alto.
Mas não nos podemos esquecer no entanto daquilo de que somos formados. Tal como o Príncipe Perfeito influenciou as gerações das décadas seguintes, nas quais encontramos nomes como D. João de Castro ou Gil Vicente – entre muitas centenas de outros –, muitos podem agora ser influenciados por esta vaga que em Julho se iniciou e que incita as pessoas a superarem-se, quer nas suas ambições, quer no seu desenvolvimento pessoal. Acima de tudo, de almejarmos um mundo com uma melhor justiça, coisa que o Rei D. João II, coroado em Sintra no campo de um jogo que séculos mais tarde também faria história, o tentou fazer não olhando a meios.
Mas os meios estão hoje presentes e ao nosso alcance. Só temos de ter a mesma ambição e cuidados redobrados para ter um mundo mais justo.
E teremos sempre o lugar lendário – e discreto – onde foi um Rei de Portugal coroado em Sintra. No campo do jogo da péla.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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