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ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2018 ~

Castro Forte

Castro Forte
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 01 de Junho de 2018

    ...e outros em quem poder não teve a morte. É assim que Luís de Camões canta D. João de Castro, o Castro forte em quem poder não teve a morte. E esta é mais uma das vezes em que aqui falarei do grande D. João de Castro.

    Quantas vezes não se sentiu já enganado? Uma mentira, um descuido de atenção, uma decepção de um colega ou de alguém que na sociedade tenha a responsabilidade de o representar, entre muitas outras formas de se ter o sentimento de se ter sido enganado. Mas sentiremos todos o engano da mesma maneira e com a mesma intensidade em casos que sejam semelhantes? Algumas pessoas terão cúmplices na forma de sentir as emoções e os esquemas a elas associados, fazendo isso com que se sintam fraternalmente mais próximos. Mas todos nós, entre nós, sentimos as coisas de forma diferente. Podemos até suspeitar que temos os mesmos princípios, mas até esses são tidos como os melhores apenas mediante a concepção do mundo de quem os possua (certamente que numa vasta variedade de criminosos, terão muitos desses e para si próprios, os seus melhores princípios).

“Do[m] Ioam de Crasto [sic] Governador e V[i]so Rei”. Do livro de Lisuarte de Abreu, século XVI, actualmente na Pierpont Morgan Library de Nova Iorque

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    Quanto mais enganos alguém com eles se vai deparando na vida, mais se vai apercebendo que tem uma visão mais aproximada dos princípios que são mais amplos e se preocupam com o próximo.

    Encontrar alguém honrado é, neste mar de enganos ondulado pela vida, um oásis. Encontrar alguém cujos princípios visam o próximo e deixar este mundo melhor do que se encontrou é sentir o reavivar do fogo da esperança. 

    Mas quer isto dizer que todos os homens honrados são como Diógenes procurando homens honestos, usando para isso uma candeia acesa em plena luz do dia? Na verdade, não. Somos humanos e umas pessoas são mais flexíveis do que outras. Mas felizmente existem excepções: os inflexíveis.

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Fragmento de tapeçaria da série Feitos e Triunfos de D. João de Castro, século XVI, pertença do Museu Kunst Historisches, Viena

    D. João de Castro, por tudo aquilo que passou e pela postura que através da história se percebe que teve, foi um desses inflexíveis. É também através da devassa da sua vida privada – esbatida pela distância cronológica que perdoa a história – que percebemos mais sobre a sua fogosa inflexibilidade. É através das suas várias cartas que também tal se percebe. E existe uma que revela o fogo da revolta que o Castro Forte sentia. Numa carta ao seu filho D. Álvaro de Castro, chegamos a determinado trecho em que começamos a ler o quão inflamado o Castro Forte estava com o comportamento de certos portugueses:

    ...no caminho avisando-me de toda a gente que está nessa fortaleza e assim novas das caravelas e de tudo o mais, e estou para me enforcar dessas caravelas lá não serem e merda para elas e para os que vão dentro e para Gomes Vidal, porque são homens de merda que não sabem navegar senão para tomarem portos e comerem pão fresco e rábanos e saladas, e andarem às putas e desejo assim ao capitão e a Vasco da Cunha e a Frei Paulo, porque já não hei-de falar se não desta maneira, e merda para mestre Diogo e para quantos apóstolos vêm de Portugal porque sirvo muito bem ElRey Nosso Senhor e eles são grandes hipócritas que querem haver [ter] bispados para darem renda a seus filhos e terem mancebas gordas, e não quero dizer que merda para Manuel de Sousa, o das ilhas, porque o não tenho ainda por marca disso, porém tenho o seu catur [pequena embarcação de seis remos] varado [em terra seca] e como vier o patrão-mor o hei-de mandar queimar e a cinza dele botá-la no mar onde nunca mais apareça.

Fragmento de tapeçaria da série Feitos e Triunfos de D. João de Castro, século XVI, pertença do Museu Kunst Historisches, Viena

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    Se tem dúvidas acerca do que leu não as tenha, pois tudo aquilo que lhe pareceu era realmente o que era. Nesta carta pessoal, privada, para seu filho, podemos bem ver o quão fogoso e revoltado o Castro Forte se sentia por passar dificuldades, por passar as maiores dificuldades, quando outros do Império iam até às Índias para da esfera armilar se aproveitarem.

    Para quem se sinta surpreendido com estes palavrões serem utilizados no século XVI, ficou aqui a prova de como a vida do passado, a vida da antiga história, tem muito mais humano sentir do que aquilo que as pessoas pensam que tem. E a propósito de palavrões e relacionado também com Sintra, por esses anos começava pega – a ave, como aquelas que temos pintadas num dos tectos do Paço Real de Sintra – a ser associada às senhoras que muito falavam (foi o início do caminho que levou a que essa denominação de uma espécie de ave se tornasse na ofensa que hoje se conhece).  

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A capela de Nossa Senhora do Monte (Quinta da Penha Verde, Serra de Sintra), espaço onde D. João de Castro sonhou ser sepultado

    E dúvidas quem as tiver, que agora – com as palavras do Castro Forte aos senhores de Goa – as dissipe: Não terei, Senhores, pejo de vos dizer, que ao Vice-Rei da Índia faltam nesta doença as comodidades, que acha nos hospitais o mais pobre soldado. Vim a servir, não vim a comerciar ao Oriente; a vós mesmos quis empenhar os ossos de meu filho [que morreu soterrado na derrocada de um baluarte numa investida do Império Otomano], e empenhei os cabelos da barba, porque para vos assegurar, não tinha outras tapeçarias nem baixelas. Hoje não houve nesta casa dinheiro com que se me comprasse uma galinha; porque nas armadas que fiz, primeiro comiam os soldados os salários do Governador [ele, D. João de Castro] que os soldados de seu Rei [referindo-se aqui com “soldados” também a ele próprio, D. João de Castro]; e não é de espantar que esteja pobre um pai de tantos filhos. Peço-vos que enquanto durar esta doença me ordeneis da fazenda Real uma honesta despesa, e pessoa por vós determinada que com modesta taxa me alimente.

O interior da capela de Nossa Senhora do Monte (Quinta da Penha Verde, Serra de Sintra), lugar sagrado onde o Castro Forte quis que o sepultassem

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    O Castro Forte era-o até na dignidade com que pedia para que o ajudassem na mais triste miséria. Do que tinha para si tomado, via-se no que lhe tinha ficado depois do que a seu filho deu, pois ...nem tivera jamais possibilidade para comprar outra colcha, que a que na cama viam; só a seu filho D. Álvaro fizera uma espada guarnecida de algumas pedras [preciosas ou semi-preciosas] de pouca estima, para regressar ao Reino. Foi este seu filho, trazendo a espada que seu pai lhe tinha oferecido, que trouxe também o desejo do Castro Forte para que fosse levantado o nosso Convento dos Capuchos da Serra de Sintra. 

    Doente, extremou ainda mais as coisas, pois pediu que mandassem fazer um termo para que se alguma hora se achasse outra coisa [algum valor para seu uso pessoal], El Rey, como a perjuro, o castigasse. Ou seja, mandou fazer um documento em que pedia para que o castigassem se algo fosse achado que em termos de dinheiro contrariasse a mísera condição de que se queixava viver.

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Uma das tapeçarias da série Feitos e Triunfos de D. João de Castro, século XVI, pertença do Museu Kunst Historisches, Viena

    Assim que o Castro Forte viu que era chamado à mais dura batalha, chamou ele para si o religioso Francisco Xavier, buscando para tão duvidosa viagem, tão seguro piloto, o qual lhe foi, [em] todo o tempo que durou a doença, enfermeiro, intercessor e mestre. O Castro Forte rendeu-se assim a Deus no ano de 1548, com quarenta e oito anos de idade, e foi após a sua morte que se acharam todos os bens do Vice-Rei: umas míseras três tangas larins [moedas de baixo valor], as barbas que utilizara como penhor, e umas disciplinas com sinais de muito uso. Deixara ordens para que depois que seu corpo fosse depositado em São Francisco de Goa, fosse trasladado para a morada que desejava que fosse a sua final: em solo sagrado da sua amada Quinta da Penha Verde, na Serra de Sintra. Será necessário dizer que alguém de tanta e tamanha honra não teve –  nem após sua morte na miséria – quem lhe honrasse esse seu último desejo?

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por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra

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