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Artigos do Jornal de Sintra, 2017 - Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra.jpg

ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2017 ~

As Colinas dos Reencontros

As Colinas dos Reencontros
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 13 de Janeiro de 2017

    Sintra é, sem qualquer dúvida, mais feita de encontros do que desencontros. Aqui se encontram poetas e escritores, mal-amados e sonhadores, sem esquecer todos aqueles e aquelas cujos sonhos desfeitos os trazem até aqui em suas dores. Por vezes aqui se cruzam num encontro que sela uma união. Outras, em encontros que lembram o passado e as vidas que foram em separado vividas até aqui de novo se encontrarem.

    Poderá estar a sentir o ambiente da velha Vila nesses imaginados reencontros, mas aquilo a que aqui me refiro é a Serra. E sim, também esses encontros e reencontros se dão na Serra. Sempre se deram. E hoje o que lhe trago é um desses reencontros do passado.

O Mosteiro de Nossa Senhora da Pena, por William Hickling Burnett na década de 1830

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    De manhã subi a Serra pelas encostas que dão para Santa Eufémia, e no trilho de uma, com as sombras dos altos pinheiros a caírem sobre as rochas cobertas do veludo do musgo e das escamadas heras, vi, na distância, o lugar onde antes se situava o Mosteiro da Pena (actual Palácio da Pena).

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O retábulo de alabastro do século XVI que ainda hoje se encontra na capela do Palácio da Pena, em fotografia de fins de 1800 ou inícios de 1900

    Intuitivamente imaginamos todas as perspectivas, todas as vistas para esse monte onde se situava o antigo Mosteiro: das terras a Sul que até Cascais se estendem; das terras a Este que se perdem entre nebulosos montes nas manhãs de Inverno curvando para Sul a caminho de Lisboa; e as terras que a Norte se situam formando uma imensa planície saloia. Mas nunca imaginamos a vista ondulante que teríamos se embarcados na agitação do Atlântico. E essa era nos tempos passados a mais importante vista para a Serra, para o pináculo que era cumeado pelo antigo Mosteiro da Pena. Principalmente nos séculos XVI e XVII, as embarcações que faziam a carreira da Índia quando cruzavam o Atlântico do Brasil para Portugal - na última etapa dessa longa carreira por ventos enfunada -, sofriam as últimas tormentas da viagem que durava meses. Eram atormentados pelas grandes vagas de um mar horrendo quando se levantava uma tempestade, eram atingidos pelas esferas de ferro ou pedra, fogo esse disparado por piratas e corsários que muitas vezes saqueando-as as deixavam apenas com um par de tábuas e seus tripulantes à deriva.

    Vindo eu das Índias do ocidente com outros navegantes, depois de passarmos no mar grandes naufrágios, viemos com tormenta ter a Portugal: & do mar olhámos para uma alta montanha, baliza dos mareantes, chamada serra de Sintra: & vendo num alto pináculo dela uma coisa, que se não sabia divisar, se era casa ali situada, se penedo ali criado, perguntámos a um Português, que connosco vinha, que era aquilo: & ele nos disse, que era um devoto mosteiro de são Jerónimo, chamado Nossa Senhora da Pena, que certo ao longe mais parecia ninho de águia, que habitação humana. E como fomos certificados, que era casa de Nossa Senhora, a saudámos do navio: & postos em joelhos lhe dissemos a salva, pedindo-lhe com lágrimas intercedesse por nós a seu bento Filho. E pois a primeira coisa, que víamos em Portugal era a sua pena, nos livrasse da nossa, merecida por nossa culpa.

Gravura do ano de 1838 da autoria de Manuel Maria Bordallo Pinheiro, representando a entrada principal no Mosteiro da Pena

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    Quem tal nos conta é Frei Heitor Pinto, numa publicação do ano de 1572, em que as suas personagens contavam em muitos dos seus diálogos, muitas das histórias de vida de Frei Heitor Pinto. Neste caso específico, o diálogo tem o nome de Da Verdadeira Amizade, título que evoca algo tão sensível como raro. E neste diálogo que tem o nome de Da Verdadeira Amizade, Frei Heitor Pinto coloca o Negociante a contar a história de quando vinha das Índias, como acima acabou de ler. Mas chegado a terra, o Negociante diz que fui eu em romaria àquele mosteiro [da Pena], onde além de muitas coisas, que vi notáveis, foi um retábulo grande de alabastro de maravilhoso artifício, que está no altar-mor [nota: o retábulo ainda hoje pode ser observado na capela do Palácio da Pena].

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Letra capitular ornamentada com penitenciados, utilizada numa das páginas de Imagem da Vida Christam (v.1) de Frei Heitor Pinto, edição do ano de 1572

    Lá se encontrando, saiu do Mosteiro e num outeiro daquele íngreme monte, & estendendo os olhos para todas as bandas vi quanto com eles se podia alcançar, até cansar a vista no seu horizonte. Por uma banda aparecia a terra em partes montanhosa, & de altas rochas & penedias, & em partes coberta de verdes & sombrios arvoredos, & de vales amenos regados com as doces e frias águas de deleitosas ribeiras. Por cima disto viam-se férteis campos, & frescas várzeas, & diversidades de gados, que andavam pascendo as verdes ervas. Vista a terra estendi os olhos ao mar, até onde a vista faz termo: & estive contemplando aquele grande mar oceano tão profundo, & ao parecer tão imenso, onde eu tantos perigos e naufrágios passara, & tantas desaventuras padecera. E daí saltei com os pensamentos nos trabalhos, que se me punham diante, & nas tribulações, que me ficavam por passar, & quão longe estava meu remédio de meu desejo. E querendo-me consolar trazia à memória o descanso, que muitos tinham, & que assim o poderia eu vir a ter: mas como a dor própria não descanse no alheio repouso, nada disto me consolava, antes me entristecia mais.

Sol como separador numa edição de I. da V. C. (v.1.) do ano de 1585

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    Continuando com os seus pensamentos, esses acabam por o levar a compreender que a verdade é amar a Deus, & aferrar nele a vontade, & a âncora da esperança, & servi-lo com firme coração. E estando assim delindo minhas mágoas em lágrimas, porque me impediam a vista lhes disse: Vós lágrimas minhas, que na lembrança de minha dor me acompanhais, estancai um pouco, que para outros lugares me ficareis reservadas.

    Estando com aqueles pensamentos, olhando o Mosteiro e todo o horizonte em derredor, o Negociante apercebe-se de um peregrino bem ataviado a aproximar-se... Ambos se saudando, reconhece que esse era um homem com que eu em outro tempo tivera estreita amizade, & conversação. E ele tanto que me conheceu, & me abraçou, & viu os trajos vis, em que eu estava, diferentes dos que em outro tempo me vira, & soube de mim minhas desaventuras, & como perdera no mar, quanto trazia, chorou muitas lágrimas comigo, & eu com ele: & contando cada um de nós alternadamente ao outro novas de sua vida, fomos andando, até chegarmos à igreja, onde entrámos com a devoção, que pudemos. E acabada nossa romagem nos partimos, & viemos ter à grande & nobre cidade de Lisboa, onde me ele proveu de tudo o necessário, & me fez obras de verdadeiro amigo, em tempo que eu estava tão necessitado, que porventura se o não achara a ele, me perdera a mim.

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São Miguel segurando na mão direita a balança (que pesando as almas aferirá se podem ou não entrar no Paraíso) e tendo debaixo de seu pé uma representação de Lúcifer - presente numa edição de I. da V. C. (v.1.) do ano de 1591

    Estes dois homens - sendo ou não parte do imaginário de Frei Heitor Pinto – quando moços tinham tido muita familiaridade, mas quebrada a nau de nossa conversação no tempestuoso mar desta vida, uns se deram às armas, outros às letras, outros à mercancia, outros se meteram em religião: de maneira que fomos lançados em diversas partes, pegando-se cada um com a tábua, que achou diante, & lhe melhor pareceu. Mas estando assim em diversas terras, estamos unidos nas vontades. E ainda que alguns deles são mortos, tenho-os eu vivos na memória: porque nas verdadeiras amizades caso que se perca a familiaridade & conversação, não se perde o amor, nem a lembrança.     

    Com quase 450 anos, este recontar ilustra muito bem as histórias de afecto que em encontros e reencontros com a Serra como testemunha, aqui sempre se deram, aqui se continuam a dar. Enleva o sentimento de amizade, e... No discorrer dos seus Diálogos, Frei Heitor Pinto conta-nos muito mais de um sapiente conhecimento da vida, que bem vivo se mantém mesmo passados 450 anos. É algo mais que a Serra lhe dá no fim destas minhas palavras, aqui, hoje.

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por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra

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