ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2016 ~
As Barbas de
D. João de Castro
As Barbas de D. João de Castro
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 01 de Julho de 2016
Quando nascemos, vêm em nós impressos muitos traços que os desígnios e comportamentos da nossa ascendência nos legaram. Uns de nós com bons corações, outros de nós com “interesses maiores”.
No viver dos primeiros anos, com o desconhecido que todo o mundo para nós é, muitas coisas, vivências, sentires, vão ficando em nós marcados de forma profunda. São coisas que ficam para o resto da vida e que nos transportam através dos sonhos da adolescência. Sonhos intensos que influenciam sobremaneira todo o nosso futuro.
Gravura rasurada de D. João de Castro, de um livro da biblioteca de António Carvalho Monteiro, antigo proprietário da Quinta da Regaleira
Mas com o passar dos anos a intensidade desses sonhos vai esmorecendo. Vamos percebendo os recantos da vida, do mundo, e os recantos das almas das pessoas. E quanto mais nos dedicamos a algo, seja família, trabalho, ou amor, mais nos vamos distanciando dessa intensidade do desconhecido.
Existem contudo histórias que não nos fazendo sonhar, trazem uma intensidade que rebrilha não à nossa frente para nossos olhos a verem, mas dentro de nós para nosso coração mais forte pulsar.
Nem todas as pessoas perceberão os sentimentos que estão por detrás desta história que hoje lhe trago. Umas por vezes acham graça, outras acham curioso, e outras brincam, até disto falando como se fossem extensões de cabelo – sim, é verdade. E se princípios muitos os têm, não quer dizer isso que sejam esses os princípios mais correctos. “Mais correctos” segundo o respeito e consideração que todos aqueles que nos rodeiam – conheçamo-los ou não – nos merecem. São coisas que vão muito além dos professores que se tem, da instituição que se frequentou, ou dos comportamentos que no lar foram, quando jovens, aconselhados. São assuntos da alma, tanto por envolverem o bom senso do saber estar e sentir, como por envolver o ter bom coração.
D. João de Castro numa gravura do século XIX
A história que trago hoje conglomera todos esses sentires na pessoa, no ser humano, que no século XVI a fez surgir, e que no objecto que após o fenecer de sua vida se dar, pelos tempos se prolongou.
D. João de Castro foi, em determinada altura de sua vida, sugerido para ocupar o cargo de Vice-Rei da Índia por alguém que muito afecto lhe tinha: o infante D. Luís, irmão do Rei D. João III. Sendo um raro homem que aglutinava em si as mais corajosas capacidades de um soldado com as da alma sagaz de um pensador, os sucessos que teve nos mares, assim como na defesa da Índia, foram os mais variados. Este valoroso homem chegou inclusivamente a contribuir com escritos seus para alguns avanços da ciência.
Preciso no entanto de lhe transmitir que esses sucessos não eram representados pelas mais grandiosas conquistas de tesouros; esses sucessos eram quase sempre símbolos das mais elevadas conquistas que a nobreza de sentimentos pode em si conter, como a resistência e a perseverança de quem tem na sua vivência a responsabilidade de uma parte do Império à sua guarda.
Enquanto Vice-Rei da Índia, num determinado período da década de 1540 teve de resistir a uma série de investidas dos homens do Sultão de Cambaia (ou Guzarate). Numa dessas investidas à Fortaleza de Diu, numa armadilha às escondidas montada por uns quantos homens de forma isolada, deu-se o rebentamento de um baluarte. Tendo-se desmoronado a estrutura com a explosão, acabou essa por matar um dos filhos de D. João de Castro, que ali se encontrava enquanto soldado.
O brasão dos Castro no Convento dos Capuchos da Serra de Sintra. O Convento foi erigido por D. Álvaro de Castro, a mando de seu pai, D. João de Castro
O Vice-Rei, ao saber da notícia, em vez de se fechar em casa como forma de luto, mandou repicar os sinos de todas as igrejas e, vestido galhardamente, saiu montado a cavalo dizendo que o seu filho não morrera mas que havia, isso sim, conquistado a palma [glória] de cavaleiro de forma valorosa.
Passado pouco tempo, chegou o fim do Verão e o cerco a Diu foi levantando pelos homens do Sultão. D. João de Castro teria de mandar reconstruir a Fortaleza para a mesma estar pronta quando chegasse o tempo quente e, com esse, novamente os homens do sultanato. Mas a penúria era o timbre que a ausência de moedas fazia vibrar.
Escreveu por isso uma carta aos senhores mais poderosos de Goa, dizendo-lhes que embora governador do Reino de Portugal naquela parte do Império, não tinha dinheiro para reconstruir a Fortaleza e que precisava de o fazer para defesa de todos; não pedia que lhe dessem dinheiro mas que lho emprestassem. Para mostrar sua honra tentara arranjar o mais válido penhor: mandara desenterrar os ossos de seu filho recentemente falecido. Mas esses estavam num estado que não permitia que assim fossem enviados. Enviava-lhes por isso como penhor aquilo que mais de seu tinha e que demonstraria a veracidade das suas palavras e da sua vontade: enviava-lhes as suas próprias barbas.
Um anjo em gravura de 1671, carregando as armas dos Castro da Penha Verde
Na resposta à sua carta deram-lhe mais do que a necessária soma para a reconstrução da Fortaleza, enviando-lhe também de volta as suas barbas e dizendo-lhe que tão honrado penhor não seria necessário pelo amor que eles lhe tinham. A Fortaleza de Diu foi reconstruída e o Vice-Rei continuou a revelar os seus sucessos no viver e no resistir.
D. João de Castro chegou ao fim de seus dias ainda na Índia e na maior das misérias. São marcantes as suas últimas palavras:
Não terei, Senhores, pejo de vos dizer, que ao Viso-Rei da Índia faltam nesta doença as comodidades, que acha nos hospitais o mais pobre soldado. Vim a servir, não vim a comerciar ao Oriente; a vós mesmos quis empenhar os ossos de meu filho, e empenhei os cabelos da barba, porque para vos assegurar, não tinha outras tapeçarias, nem baixelas. Hoje não houve nesta casa dinheiro com que se me comprasse uma galinha…
E pouco, pouquíssimo tempo depois, teria apenas os braços do missionário Francisco Xavier, para neles morrer…
A nós ficam-nos as histórias, os exemplos, de um grande homem para que grandes homens possam no futuro apurar os seus princípios com marcas da nossa história como estas o são.
E não só. D. João de Castro deixou-nos ainda a sua amada Quinta da Penha Verde em Sintra, e um relicário – qual Graal donde a honra pode ser com os olhos e coração bebida – com as suas célebres barbas, tendo sido visto pela última vez na dita propriedade em Sintra, no fim do século XVIII.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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