ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2020 ~
"A Ser Lido"
"A Ser Lido"
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 31 de Julho de 2020
Já tinha escrito o artigo do Jornal de Sintra para o mês de Maio – a segunda parte de Livros Lendários - quando, por mero acaso, me dei conta de que este ia ser o meu 50.º artigo nesta secção. Quando fui convidado, senti-me obviamente honrado, pois além da já longa história do Jornal de Sintra, para ele escreveram figuras da nossa História como Agostinho da Silva ou José Pedro Machado. Do grande José Pedro Machado encontrei há dias uma anotação que fiz há muitos anos atrás, em que José Pedro Machado se voltou para um aluno seu e perguntou:
- Qual é a tua profissão?
- Quê?
- Sim, o que tu fazes?
- Ajudo o meu pai, ando com ele.
- E que faz o teu pai?
- Nada...
Muito mais facilmente nos ficam na memória curiosidades flexíveis de serem a outros contadas, do que factos formais e ásperos. Não quero com isto dizer que uns devam existir e outros não, trata-se apenas da constatação de um facto.
Neste 50.º artigo sinto que deverei falar sobre o que aqui tem sido escrito, quando em relação com o título desta secção: Lendas e Factos Lendários de Sintra.
Ao fundo entre os pinheiros mansos, o Penedo dos Ovos encimado por uma cruz (em Penha Longa). Fragmento de gravura de William Burnett, década de 1830
Em Portugal as pessoas estão habituadas a que as lendas sejam histórias surgidas entre o povo – e antes também, entre as quatro paredes aquecidas por uma lareira (isto é: num ambiente de aconchego perante as intempéries) –, uns dizendo que as lendas têm sempre um fundo de verdade, outros dizendo que as lendas são produções fictícias. As lendas são ambas essas as coisas e muitas outras. Ou seja, as lendas surgem com o seu próprio poder e liberdade, pouco nós podendo fazer para as controlar.
Se olharmos para muitas e diferentes lendas, de diversas regiões, de outros países, e se as analisarmos, podemos perceber várias coisas. A primeira – se olharmos para as lendas dos outros países – é que existe, existiu sempre, um apequenamento do conteúdo das lendas: ou é quase sempre alguém que era “coitadinho” ou estava “deitadinho”, ou era “pequenino”, ou qualquer outra coisa baseada em diminuitivos e que substitui a dignidade que deveria estar presente; quando não é um apequenamento por falta de vocábulos que evoquem dignidade, é um apequenamento por tornar tudo em algo com cariz amoroso ou sexual. O amoroso é totalmente válido se se tiver um conteúdo decente; o sexual já é algo mais íntimo e é sempre aconselhável que quem queira exercer a prática de tais fantasias em palavras recorra ao muito que felizmente hoje existe no mundo, acessível de forma gratuita. Felizmente, com a globalização de informação a que assistimos cada vez mais com a internet, existe a necessidade de categorização e classificação, para que informação indesejada não seja apresentada a públicos que não a querem, ou públicos para quem isso poderá ser inapropriado.
O Palácio da Pena e o Castelo dos Mouros, debaixo de uma lua cheia. Fragmento de gravura de Colebrooke Stockdale, década de 1870
Dentro da análise que mencionei ao olharmos para várias lendas, percebemos também que a lenda tenta sempre evocar algo, alguém, algum acontecimento, para que, devido aos traços curiosos, fascinantes, ideológicos, dessa evocação, a lenda possa continuar a ser recontada. Com os recontares, com os normais lapsos de memória, com o oportunismo de quem pretende aplicar propositadamente uma mentira que se ajuste a uma situação que o favoreça, as lendas nos seus recontares vão sendo adulteradas e mutiladas. Podemos ver isso numa lenda que aqui já mencionei várias vezes, a Lenda das Pegas – “pega” aqui sendo o termo da ave que “fala” muito -, em que deverá ter começado no século XVII com D. João II no Palácio de Sintra e uma dama, e a vemos no século XX com D. João I e várias damas. Uma curiosidade acerca de mutações que vão ocorrendo nos recontares e nos vocábulos: no século XVI percebemos “pega” – no sentido da ave – a ser aplicado a senhoras que falavam muito; no século XVIII já percebemos esse mesmo termo a ser aplicado a senhoras que falavam muito e eram intriguistas; no século XX, bom, aí já sabemos a que corresponde. E é assim que tanto termos como recontares se vão modificando, em alguns momentos ficando com um sentido bastante diferente do sentido inicial.
Um dos mais belos pórticos do Paço Real de Sintra. Gravura de Celestine Brélaz, década de 1830
Nos anos de 1400 vemos em português ser utilizado o termo “Leenda”: ...ajumtarom-nas por maneira de leenda em esprito... Estranho? Já perceberá. A origem desta “Leenda” é precisamente o latim “Legenda”, que significa “a ser lido” – nos tempos de então, a ser lido, mas em voz alta, para os demais – principalmente os que não sabiam ler, que não eram poucos – ficarem a conhecer a informação. Ora “Leenda” é a corrupção do termo “Legenda”. Este último termo era utilizado como título de hagiografias, de biografias de santos, como vemos no título em latim Legenda Sancti Francisci – “Legenda de São Francisco”. Nesta obra ficávamos assim a conhecer a vida e feitos de São Francisco de Assis. As Legendas tinham sempre características em que alguém era evocado através de feitos ou vivências ao alcance só de santos, isto é, coisas que marcavam pela sua curiosidade, pelo seu extraordinário ou excêntrico. É assim fácil perceber como é que os termos “legendário” e “lenda” surgiram associados a recontares não sagrados: pela estranheza dos acontecimentos que reportavam.
Um pôr-do-sol com a silhueta do Paço Real de Sintra na distância. Fragmento de gravura de William Burnett, década de 1830
E para que não fique ponta solta, ...ajumtarom-nas por maneira de leenda em esprito..., queria dizer que coligiram uma série de feitos de alguns religiosos e os guardaram em génio na sua memória, como inspiração para as suas vidas ao recordarem-se de tais feitos.
Nos dias de hoje é cada vez mais difícil surgirem lendas por vários motivos: é cada vez mais raro existirem ambientes sossegados e propícios a isso, a informação procurada é desejada na sua forma mais imediata, todos os estímulos procurados são demasiadamente objectivos e é procurada uma recompensa emocional imediata, entre mil outras razões. Existe no entanto um lugar que está cheio de lendas que assim não são reconhecidas. Esse lugar é a nossa História. A nossa História está repleta de episódios verdadeiramente excêntricos, extraordinários, e que conseguem ser verdadeiramente inspiradores. Essa inspiração vem das limitações que outras pessoas tiveram – e nas quais também nos revemos – e como as conseguiram superar, em coisas fascinantes que foram contadas como tendo realmente acontecido, e em feitos e decisões para os quais foi necessária a coragem que quem as tomou com ela não nasceu – tal como nós desejamos e tentamos ser cada vez melhor, à medida que os dias das nossas vidas vão passando.
Um pôr-do-sol com a silhueta do Paço Real de Sintra na distância. Fragmento de gravura de William Burnett, década de 1830
Não sei se se recorda de lhe ter dito no início deste artigo que as curiosidades nos ficam muito mais facilmente na memória, do que conteúdo formal e áspero. As lendas, os factos lendários, ao serem ouvidos suscitam uma curiosidade tal que ficarão gravados durante muito tempo. E existe uma necessidade premente de marcar – pela positiva – a nossa História, a nossa cultura na mente de quem dessa faz parte, o que é algo absolutamente possível, tal como as pessoas que me ouviram contar histórias da História (lendas) há vários anos atrás, e ainda delas se lembram. Se se questionasse uma destas pessoas – no contexto de sua vida, distante da História – acerca de um facto muito mais curto mas formal e áspero que tenha ouvido nesse mesmo ano, certamente a pessoa não se iria lembrar. E isso porque aquilo que nos afecta emocionalmente – no caso: afecta positivamente – fica marcado na nossa memória.
É por isso que costumo dizer que os meus amigos estão todos dentro de minha casa, no meu quarto, no escritório, na sala, na cozinha, entre as páginas dos livros. Os fragmentos dos seus corpos podem continuar espalhados pelo planeta, assim como os fragmentos de tudo em que tocaram, mas as suas almas continuam vivas e os seus tempos são cada vez mais vivos para mim, pela ligação emocional que crio com essas pessoas que – desconhecidas ou conhecidas – ajudaram a formar a nossa História. É esse o meu trabalho, assim como passá-lo aos outros, tal como aqui na secção Lendas e Factos Lendários de Sintra tento fazer mês após mês desde 2016.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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