ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2018 ~
A Rainha Mãe
A Rainha Mãe
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 23 de Fevereiro de 2018
Outrora, num tempo distante, existiu quem pelos portugueses fosse considerada como sua mãe, devido ao cuidado que por esse povo nutria – ajudando a isso, claro está (segundo o espírito de submissão que nesse povo se encontra sempre latente), o facto de não ser portuguesa de origem. Neste 12 de Fevereiro perfizeram-se 440 anos desde a madrugada de sua morte.
Ao final do dia que se seguiu ao de sua morte, o corpo da Rainha saiu do Paço de Enxobregas (actualmente Xabregas; antigamente local paradisíaco) acamado num esquife, acompanhado por cerca de dois mil cavaleiros segurando tochas. Milhares de mãos iam tocando nos varais do esquife à medida que esse ia atravessando as apertadas e sinuosas ruas da cidade amuralhada de Lisboa, por entre prantos e gritos de desgostoso e amargo querer do povo, recusando aceitar a decisão divina da sua partida deste mundo.
A Rainha D. Catarina, também conhecida como Catarina de Áustria (Casa de Habsburg), pelo pintor Anthonis Mor van Dashorst em 1552 (fragmento). Actualmente no Museo del Prado, Madrid
Chegado a Santo Amaro (Alcântara), o corpo foi ao encontro das irmandades, confrarias e ordens religiosas, que ali o aguardavam. Partiram então a pé para Belém, onde chegaram passando das dez horas da noite. Aí o corpo da Rainha D. Catarina encontrou o corpo do seu antigo esposo, o Rei D. João III, que ali, havendo vinte anos, tinha sido sepultado.
D. Sebastião ficou órfão de pai antes do seu nascimento e, pouco tempo depois, sua mãe, viúva, regressa a Espanha para sempre. Foi a Rainha D. Catarina, a avó, que ficou com o papel de mãe de D. Sebastião. E D. Catarina não teve uma vida fácil enquanto sua avó e sua mãe. D. Sebastião teve como tutor (de origem apenas) um jesuíta que se crê não ter sido uma boa influência na formação do carácter do Rei. D. Catarina passou por tanto que, por temor do Rei se perder num reino distante e o nosso ficar sem descendência, ameaçou, em desespero e angústia, sair de Portugal para sempre – facto que fez com que D. Sebastião acalmasse o seu ímpeto belicoso (apenas momentaneamente).
O Príncipe D. João Manuel, filho da Rainha D. Catarina e pai do Rei D. Sebastião. Fragmento de retrato executado por Anthonis Mor van Dashorst na Primavera de 1552, Actualmente em Hampton Court Palace, Inglaterra (parte integrante da Royal Collection)
Outro exemplo foi um conselho que se reuniu no Paço de Enxobregas, no qual estavam além do Rei D. Sebastião, o seu tio-avô, Cardeal D. Henrique, a sua avó, a Rainha D. Catarina, e em que tiveram inclusivamente de colocar alabardeiros a barrar o caminho aos transeuntes para que não passassem junto ao Paço, não conseguindo no entanto impedir que quem no rio em navegação passasse, ouvisse a gritaria e discussões que ali se davam, projectadas pelas amplas janelas abertas. Ao que parece, terá sido uma aparição do defunto D. João III (marido da Rainha D. Catarina) numa noite a um frade, contando-lhe todas as desgraças que no Reino se sucederiam, que levou a que o conselho real se reunisse para precaver o Reino.
Ironia das ironias, logo após a morte da Rainha D. Catarina, D. Sebastião foi encerrar-se no Mosteiro de Penha Longa (na parte Sul da Serra de Sintra), preparando – ao que tudo parece – a jornada ao Norte de África, que acabaria mesmo por ser consumada seis meses depois da morte de sua avó, e que resultaria na sua própria perdição. Muita falta fez aqui a sua mãe substituta.
D. Sebastião com cerca de 8 anos de idade, pelo pintor Alonso Sánchez Coello (fragmento). O quadro encontra-se actualmente no Museu Kunst Historisches, em Viena, mas esteve durante 400 anos sem a identificação correcta do Rei
Provedor e Irmãos da Misericórdia da minha Vila de Sintra, eu a Rainha vos envio muito saudar. A Vila de Sintra era então, em sua vida, pertença da Rainha D. Catarina. As vezes que se encontrou no nosso Paço Real foram incontáveis, e quando aqui não estava recebia na sua mesa o mel e a água de Sintra, enquanto as noites eram iluminadas pelas velas feitas da cera que daqui lhe chegava.
D. Catarina viveu durante um largo período dos anos de 1500, tendo sobrevivido a muitas figuras das quais já neste espaço falei. Sobreviveu a D. João de Castro, que tinha aqui a sua amada quinta; terá sobrevivido ao Panasco, o escravo que, passando ainda por uma espécie de bobo, chegou a cavaleiro (e do qual neste espaço do Jornal de Sintra falei, em duas edições do passado ano de 2017, e que infelizmente coincidiram cronologicamente com a questão que foi de pobre forma – pobre, por formular opinião tendo como base uma falta de contacto com publicações, memórias e anotações, de Portugal do século XVI – levantada a propósito da exposição do MNAA intitulada A Cidade Global – Lisboa no Renascimento); e do seu tempo sobreviveram-nos várias coisas, como – segundo as crónicas – o culto que fez surgir a Peninha como destino de romeiros da zona, ou a quinta e solar dos Ribafria, ou o magnânimo retábulo que hoje podemos ver ao visitarmos o Palácio da Pena.
Em relação a este último há que dizer que foi esculpido quando ali, naquele mesmo cume da Serra de Sintra, encontrávamos o antigo Mosteiro da Pena. Mas há mais a dizer, pois o próprio retábulo relaciona-se directamente com a Rainha D. Catarina, como lemos na inscrição que se encontra no pedestal: D. João III, filho de D. Manuel, neto de D. Fernando, bisneto de D. Duarte I, trineto de D. João I, Rei de Portugal e dos Algarves, África, Etiópia, Arábia, Pérsia, Índia, pelo feliz parto da cônjuge inigualável Rainha Catarina que gerou seu filho, o Príncipe D. Manuel, este altar que é dedicado [a Nossa Senhora da Pena] assinala-o; mandado erigir e consagrado no ano de 1531 (tradução livre do autor).
Medalha representando o elefante de nome Suleiman (como o Sultão do Império Otomano), oferecido a Carlos, Príncipe das Astúrias, e posteriormente a Maximiliano II (Imperador do Sacro Império Romano-Germânico), por parte da Rainha D. Catarina. Essas ofertas fariam com que o elefante fosse transportado ao longo de milhares de quilómetros. A medalha foi obra do artífice Michael Fuchs, no ano de 1554
Curiosidade é também o facto de o mestre escultor que o fez ter sido acusado pela Inquisição de utilizar itens mágicos que iam contra o comportamento regulado pela instituição Igreja. A denúncia reporta os acontecimentos precisamente ao ano em que o retábulo da Pena se encontrava a ser trabalhado.
D. Catarina tinha também um carinho especial pelos seres humanos que habitavam o Convento dos Capuchos da nossa Serra de Sintra. Quando a iam visitar – e muito provavelmente, aqui ao Paço Real – a Rainha ordenava que se sentassem com ela no estrado e, reconhecendo a fraqueza que padeciam devido à forma mortificante de vida que levavam, mandava que também ali lhes trouxessem de comer, mostrando-se mais piedosa mãe para os carinhos, do que Soberana Senhora para os respeitos.
Convento dos Capuchos da Serra de Sintra, à entrada da porta da morte
Ainda para com os nossos Capuchos, certa vez lhes fez chegar ao monte de rochas dois queijos flamengos, quando o Convento tinha um Frei Pedro como Guardião. Quem já me tenha ouvido falar de um Frei Pedro, trata-se do mesmo. O Guardião, zeloso da estrita observância da regra de São Francisco com que ali viviam, cortou metade de um dos queijos e mandou que o restante fosse para trás, transmitindo à Rainha que mais do que o tomado não aceitaria, pois essa porção lhes daria para uma semana inteira, e que de excesso não havia necessidade.
A Rainha D. Catarina, Catarina de Áustria, deixou muitas saudades. Foi a mãe que D. Sebastião nunca teve e, quando essa lhe faltou, caiu o Rei – e o Reino – na perdição que conhecemos. Foi mãe do povo que tanto a estimara nos anos de peste e de fome que o Reino de Portugal atravessou. Foi mãe que tantas noites passou no Paço Real de Sintra, à luz das velas feitas da cera que daqui se extraía, e que tanto carinho nutria pelos Capuchos da Serra de Sintra, como nós hoje pelo monte de rochas com seus corpos ainda lá enterrados, também assim o nutrimos.
por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra
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