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ARTIGOS PUBLICADOS NO JORNAL DE SINTRA
~ ANO 2017 ~

A Pedra Amarela
e Uma Raposa de Fernão Lopes 

 

A Pedra Amarela e Uma Raposa de Fernão Lopes
por Miguel Boim - Jornal de Sintra, edição de 19 de Maio de 2017

    Há mais de vinte anos atrás, um M. Mealha asmático – que muito ia para Serra, seu amante também sendo –, numa noite caminhando a meu lado e de um amigo, comentou com este último como era a lenda do Penedo dos Ovos. Contava-o a propósito das lendas de Sintra, que pareciam não existir em grande número. Naquele tempo, a Biblioteca de Sintra situava-se num dos pontos onde hoje se situa o Arquivo Histórico (Palácio Valenças), e o seu funcionamento era muito, muito diferente. Quem não soubesse já o que queria, ficaria provavelmente nas mãos com aquilo que até ali tinha levado. Mas voltando ao M. Mealha, que naquela noite se tornou carismático quer pela jovem barba que tinha e lhe acrescentava uma dezena de anos – pelo menos –, quer pelo quase sacrifício que parecia fazer ao caminhar completamente hirto e em cada sua passada ouvindo-se a intensa asma: contava por exemplo que tinha encontrado uma lenda, que falava de uma velha que tinha ido para um penedo tentando derrubá-lo com ovos, porque ouvira dizer que por baixo daquele se escondia um tesouro. Das gemas que pelo penedo escorreram, a pedra tornou-se amarela, e ficou por esse nome conhecida: Pedra Amarela. No fim, o M. Mealha, fechando-os, pressionou os lábios num desconforto que revela o mais não se ter para contar, e os três entreolhámo-nos.

Ao fundo entre os pinheiros mansos, o Penedo dos Ovos encimado por uma cruz (em Penha Longa). Gravura por William Burnett, década de 1830

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    Do século XIX existem algumas anotações sobre esta lenda de Sintra, das quais dou referências no livro Sintra Lendária. Uma delas, por exemplo, diz-nos (e removendo as partes que para hoje não interessam) que sob esta penedia [Penedo dos Ovos] existia um grande thesouro encantado, o qual só se descobriria a quem conseguisse derribar o penedo, atirando-lhe tantos ovos quantos bastassem para conseguir tal façanha... E pelos vistos, só uma "velha" houve que um dia juntou uma série deles e foi para lá atirá-los, até que esgotou as munições sem conseguir nem ao menos fazer dar ao penedo o mais leve movimento...

    No Sintra Lendária – Histórias e Lendas do Monte da Lua, e por que se encaixa esta num rol de outras tantas lendas que simples são e que de forma quase espontânea provavelmente entre o povo surgiram, refiro que terá esta sido daquelas que vai perdendo membros – palavras, expressões – até que o seu significado, ou antes, o seu impacto, se torna retórico devido à compreensão que subjaz e que é baseada em preceitos e conceitos da época. Se daqui a alguns séculos alguém dissesse o vale o que vale dos dias de hoje, quem o ouvisse acharia algo desmembrado e em que ali faltaria qualquer coisa – nomeadamente, a compreensão da época e das subtilezas das relações sociais. Para o caso, pessoal e honestamente, dizer ...vale o que vale... equivale a mais valer estar calado do que nada dizer com essa expressão.

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Em baixo, o cavalo desmontado do Rei de Portugal na Batalha de Aljubarrota, algo que sairia também da raposa de Fernão Lopes. Iluminura de Anciennes chroniques d'Angleterre, manuscrito do século XV

    No entanto (e há sempre um no entanto nestas coisas que escrevo sobre a história lendária de Sintra), pode a lenda que referi demonstrar apenas e de forma retórica, a impossibilidade de algo, que sendo inicialmente expressão foi em determinada altura adaptada a conto – ou no caso, a lenda.

    Aqui há dias estava a reler uns escritos dos anos de 1400, de Fernão Lopes, e no contar da história pelos nossos antepassados vivida, em certa parte li que o Conde João Afonso (irmão da Rainha D. Leonor Teles, que estava pelo Rei de Castela na guerra de 1383-1385) dizia como metáfora em relação ao facto do Mestre de Avis (futuro D. João I) querer conquistar o Castelo de Lisboa, que parece que fostes tais, com esse medo que vos puseram por vos espantar, como a raposa que estava ao pé da árvore, e ameaçava com o rabo o corvo que estava em cima com o queijo no bico, por lho haver leixar [“deixar”], como se fosse algo tão inútil como a raposa querer com a sua cauda derrubar a árvore para tirar o queijo que o corvo pendurado num ramo trazia no bico.

No topo direito, o Penedo dos Ovos encimado pela sua cruz; em baixo, o Mosteiro de Penha Longa. Gravura possivelmente de Francisco Maria Rosado Metello, na década de 1830

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    Este escrito dos anos de 1400, português, e aludindo a coisas que se passaram nos anos de 1300, faz lembrar um outro mais tardio, mais precisamente do século XVII e mais precisamente de La Fontaine. Faz lembrar a fábula que esse conta em que a raposa, tendo por cima de si, num ramo de uma árvore, um corvo com um pedaço de queijo no bico, o delicia com palavras sobre o seu canto, até que esse corvo, lisonjeado e vaidoso, abre o bico para cantar e deixa cair o queijo que a raposa, satisfeita e astuta, no ar apanha. Bocage, inclusivamente, transformou esta fábula em poesia portuguesa.

    É curiosa esta diferença entre a raposa portuguesa dos anos de 1400, e esta francesa do século XVII, não? Pode até existir quem pense que La Fontaine – ou a vida no seu correr – pegou no exemplo português e lhe deu mais corpo e sentido, criando assim uma fábula moralista. Será isso engano, pois é na Antiguidade Clássica que encontramos a chave desta fábula. Esopo foi quem, no século VII antes de Cristo, a terá inventado. Horácio, também poeta da Antiguidade Clássica, foi quem a difundiu no século I a.C. A forma como a fábula é utilizada nos anos de 1400 – aludindo a que foi dita na guerra de 1383-1385 –, é apenas um improviso para mostrar o ridículo e a impossibilidade da situação, da raposa derrubar a árvore onde o corvo se encontra, apenas com a cauda, como a impossibilidade do povo apenas com o Mestre de Avis derrubar o Rei de Castela, que pretendia este último apoderar-se do Reino de Portugal.

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Le Corbeau et le Renard (O Corvo e a Raposa), ilustração por Gustave Doré publicada em 1868

    Aliás, até mesmo da Antiguidade Clássica estamos cheios de ridículos e impossibilidades que ou eram utilizados como expressões ou como provérbios, como o caso de Coroibo, que querendo contar as ondas do mar não o conseguia fazer (originando a expressão utilizada há dois mil anos mais tolo que Coroibo). Ou como Aco, mulher que, vendo-se ao espelho, pensava conversar com outra mulher e contava-lhe tudo.

    Da lenda do Penedo dos Ovos, da Pedra Amarela (assim conhecida pela suas gemas, não esquecendo que existem outras toponímias iguais (Pedra Amarela) na Serra (e já agora, por curiosidade apenas, lembrando que, ao que parece, Francis Cook (Monserrate) mandava pintar de branco os penedos mais enegrecidos que conseguia do morro do seu palácio em redor ver), para além das palavras, não sabemos realmente o que nos ficou: se uma expressão representativa do ridículo e da impossibilidade assim alongada em lenda, se um conto muito maior e com uma lição moral que, perdendo muitos dos seus pontos no recontar da história, nos mostra hoje um penedo – que ainda conseguimos ver, já amarelo não sendo – que alguém disse no passado ocultar um tesouro, e que levou "uma velha" a munir-se de ovos para em força o derrubar.

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por Miguel Boim, O Caminheiro de Sintra

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